Originalmente publicada na revista Orpheu Digital # 7. Porto Alegre, janeiro de 2002
CVC | O que é a poesia para Floriano
Martins?
FM | Dizia o grego Embeiríkos que “a
poesia é o desenvolvimento de sapatos engraxados”. No mesmo poema dizia ainda:
“essa excursão não tem fim”. De alguma maneira, toda definição limita. A poesia
se deixa encharcar de toda a matéria humana. O homem a anuncia como o canto da
gravidade, da vivência. Mesmo assim, como digo ao final de um poema, “haverá
sempre algo ali impossível de se seguir”. Portanto, melhor será não defini-la,
mas antes tomar-lhe o curso, vendo o que se aprende com ela.
CVC | Quais são os autores que mais
influenciaram sua obra?
FM | Não compartilho muito essa ideia
algo imprecisa das influências que, no caso de um escritor, sempre remete a um
plano literário. Compreendo que um autor tem por influência maior a própria
experiência de vida. Em meu caso, acrescentaria um diálogo que quase sempre
estabeleço com algum livro quando estou a escrever. Posso assim pensar em
livros como The White Goddess, de
Robert Graves, ou Le coupable, de
Georges Bataille, ou Diario de muerte,
de Enrique Lihn, ou O livro egípcio dos
mortos, ou El blasfemo coronado,
de Humberto Díaz-Casanueva, que foram leituras que me acompanharam durante a
escritura de alguns de meus livros. Mas juntamente com essas leituras, posso
também referir-me ao Paris Concert,
de Keith Jarrett, ou aos carvões de Goya, ou ao Joe’s garage, de Frank Zappa e a muitas canções de Tom Waits etc.,
mas com sinceridade não vejo ali o que se poderia chamar de influência. Agora,
como somos a soma de tudo o que fomos e seremos, é natural que todos os poetas
estejam em mim, sem que me caiba destacar algum. Em todo caso, interessa o
mergulho na existência humana, no grande tumulto originário, alheio a todo tipo
de identificações convencionais, literárias ou não.
CVC | Qual relação você encontra entre
filosofia e poesia?
FM | Não creio em nenhuma dessas duas
forças desgarradas de uma imanência que lhes é peculiar, ou seja, a relação
intrínseca que ambas devem ter com o homem e a realidade. Qualquer tentativa de
torná-las distantes dessa imanência, por exemplo, a redução a mera técnica
(mística ou poética), não consegue senão afastar o próprio homem de si mesmo.
Mas tenhamos em conta que poesia é criação, invenção, ao passo que filosofia é
reflexão sobre o criado ou seu desejo.
CVC | O tempo e a memória são dois temas
recorrentes em sua obra. Você acredita que o tempo da escritura é um tempo
mágico que eterniza o assombro do poeta diante da vida, suas emoções, vivências
e ansiedades?
FM | Não há propriamente um tempo
mágico. O que se poderia chamar de mágica é nossa relação com o tempo. E esta
magia tem que estar na carne daquilo que escrevemos, pois é afinal o que
estamos vivendo. Tal experiência pulsante, diária, não se separa de uma
memória, seja do passado ou do futuro. A escritura de um poema reflete a vida
de seu criador, consequentemente comporta tanto o sublime quanto o revés, de
maneira que o assombro do poeta estará ligado mais à capacidade de percepção da
realidade.
CVC | O crítico Rolando Toro comentou
que “seu prometo poético é subversivo, alheio aos valores convencionais”. Em
que medida a sua obra se revela contra a tradição poética do Brasil?
FM | Há um componente meta-poético em
minha poesia que a aproxima um pouco de autores como Jorge de Lima ou Dante
Milano. Trata-se de uma reflexão constante sobre o próprio pensamento poético,
em meu caso uma crítica à relação entre poeta e sociedade. Por outro lado,
participam de minha poética componentes da tragédia (personagens, diálogo,
trama, coro), que lhe dão uma peculiaridade dramática que não se observa na
tradição lírica brasileira. A subversão a que se refere Rolando Toro diz
respeito a um vício formalista, beletrista, parnasiano, que caracteriza a
poesia brasileira, somente rompido em raros momentos em toda a história.
CVC | Você se considera um poeta
surrealista? Qual a importância da analogia em seu processo criador?
FM | Devo aclarar essa questão. Tenho
com o Surrealismo uma relação entranhável, sobretudo se pensarmos em alguns
poetas hispano-americanos, a exemplo de Enrique Molina ou Ludwig Zeller, que
sempre me interessaram muito. Agora, não me considero um surrealista, e sim
alguém que chamou para si a defesa do Surrealismo, levando em conta que se
tinha dele uma ideia bastante distorcida em meu país. Além desse aspecto, não
caibo nas classificações habituais.
Já no tocante à analogia, é naturalmente a chave de todos os
conflitos que encarno em meu processo criador, as relações entre visível e
invisível, possível e impossível, mundo criado e mundo por criar. A analogia
como uma transgressão do facilmente perceptível, do que se mostra apenas em
aparência. Como destacou Rolando Toro, vemos em minha poética uma “linguagem
que para viver deve consumir seu corpo”. Em tal consumição reflete sobre as
formas que encarna, averiguando inferno e paraíso, Eros e Tanatos, todos os
pares que conformam a grande aventura humana, reconhecendo as semelhanças
ocultas, restituindo o mistério da imagem, uma mística profunda que transgride
todas as leis de um pensamento lógico.
CVC | De seus primeiros livros de
poemas à sua última produção poética houve alguma mudança estilística
fundamental?
FM | Naturalmente. Por muito tempo
confesso não haver encontrado uma voz própria. Tanto em forma como em conteúdo,
vivia um pouco à sombra de algo já escrito. Em um primeiro momento, escrevi
muito pautado pelo discurso, despreocupado com a forma. Logo me deixei
influenciar bastante pela Beat Generation
e o universo dos comics, mesclando
essas duas leituras em painéis que buscavam já alguma aproximação com o que
escrevo hoje. Mas somente a princípios dos 90 é que defini uma poética que
fosse a grande soma de todas as vivências e percepções, uma escritura
polissêmica cuja complexidade estrutural não fosse apenas uma articulação
retórica, mas sim uma estratégia essencial à própria resolução dos desafios
impostos, definida por um sentido natural de abrangência de códigos, quase uma
volúpia da escrita.
CVC | Quando e por que motivo surge
seu interesse pela literatura hispano-americana?
FM | Vem originalmente da curiosidade
que logo vai se mesclando com uma indignação. Ao ler o prólogo de uma edição da
Obra Completa de Vallejo vi ali
menção a dois ou três outros poetas que eu desconhecia. Ao procurar pistas me
deparei com vários, o que me foi levando a averiguações cada vez mais intensas,
até que se descortinasse diante de meus olhos um mundo completamente outro,
fascinante em sua raiz e desdobramentos. Desde então persigo um encontro
possível entre essas múltiplas poéticas que constituem a América Latina.
CVC | Como se vê no Brasil a poesia
hispano-americana atual?
FM | Sigo lamentando que não se veja
no Brasil a poesia hispano-americana, a menos que importe falar de iniciativas
isoladas ou de algum exercício tradutório entre jovens poetas. Em um plano
editorial, não se leva em conta, em meu país, a existência de uma poesia
hispano-americana. Raramente surge alguma edição, desprovida de qualquer
caráter programático que nos faça acreditar na existência de um diálogo entre
duas culturas. Reflexo disso é que criamos um entendimento desnorteado do que
seja a poesia na América Hispânica. Caso recente é o de fascínio de alguns
poetas brasileiros pelo que se chama de neo-barroco (ou neobarroso, como preferem), o que se justifica apenas em função de
ignorância nossa em torno dos grandes postulados poéticos de gerações
anteriores.
Como o Brasil encarna uma vez mais o mito beletrista, com todos os vícios formalistas que o caracterizam
(em qual outra tradição poética seria possível o Concretismo?), o que
percebemos da atual poesia hispano-americana é justamente aqueles acentos que
facilmente identificamos como um retrocesso em uma densa e iluminada tradição.
1989 A POÉTICA DO PARADOXO [Entrevista concedida a Sérgio Campos]
1996 A FAVOR DO CONTRA [Entrevista concedida a Lira Neto]
1997 O TEATRO E O ATENEU: Breve introdução à poesia de Floriano Martins [Carlos Felipe Moisés]
1998 A MODERNIDADE NÃO É UM CADERNO DE RECEITAS [Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão]
1998 A NECESSIDADE DA POESIA [Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira]
1998 CONTINENTE DE POETAS [Wilson Martins]
1998-2010 FRAGMENTOS ROUBADOS AO TEMPO [Preparado por Márcio Simões]
1999 FLORIANO MARTINS TRAZ POETAS HISPANO-AMERICANOS AO BRASIL [Entrevista concedida a José Castello]
1999 UN LIBRO QUE UNE Y ESCUDRIÑA [Carlos Germán Belli]
2000 OS TORMENTOS DO VERBO E DA IMAGEM NA ESTRUTURA DA ALMA [Eric Ponty]
2002 AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA [José Castello]
2002 HUMANISMO POÉTICO [Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar]
2002 MÉXICO Y BRASIL BUSCAN ACERCARSE A TRAVÉS DE LA POESÍA CONTEMPORÁNEA [Rodrigo Flores]
2002 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Rodrigo Petronio]
2002 UM OLHAR NA POESIA [Entrevista concedida a Carmen Virginia Carrillo]
2002 VOZES EM CONFLUÊNCIA [Maria Esther Maciel]
2003 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Entrevista concedida a Rodrigo Petronio]
2003 PALAVRAS PRELIMINARES [Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo]
2004 SÁBIO IMPREVISTO [Entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria]
2004 UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2005 SOMOS O QUE BUSCAMOS [Entrevista concedida a Ana Marques Gastão]
2005 VERTIGENS DO OLHAR: autorretratos [Floriano Martins por Floriano Martins]
2006 A OUTRA MÁQUINA DO MUNDO [Entrevista concedida a Belkys Arredondo]
2008 FESTA DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Anderson Sandes]
2008 UMA CONVERSA COM O CURADOR DA 8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ [Entrevista concedida a Lira Neto]
2009 A INOCÊNCIA DE FLORIANO MARTINS. INOCÊNCIA? [Jacob Klintowitz]
2010 ÀS VOLTAS COM O LIVRO-OBJETO E SUAS SOMBRAS [Entrevista concedida a Madeline Millán]
2010 CIBERCULTURA EN TIEMPOS DE ANALFABETISMO GLOBAL [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2010 NASCENDO TODOS OS DIAS [Entrevista concedida a Manuel Iris]
2010 OPÇÃO PELA DISSIDÊNCIA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2010 TODAS AS COISAS À MINHA VOLTA [Entrevista concedida a Adlin Prieto]
2011 CRÍTICA E RUPTURA: a inocência de pensar de Floriano Martins [Teresa Ferrer Passos]
2011 PARTICIPAÇÃO POÉTICA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2013 QUE HOMEM É ESSE? [Entrevista concedida a Oleg Almeida]
2015 O LUGAR QUASE LASCIVO DE UMA AMBIGUIDADE [Entrevista concedida a Renata Sodré Costa Leite]
2016 AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: o inteiro continente revelado [R. LeontinoFilho]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 01 [Alfonso Peña & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 02 [Omar Castillo & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 03 [José Ángel Leyva & Floriano Martins]
2016 LOS NAVEGANTES DE LA PARADOJA [Entrevista concedida a Alfonso Peña]
2016 UM NOVO CONTINENTE [Marco Lucchesi]
2017 À LUZ DO PARADOXO [Entrevista concedida a Leila Ferraz]
2017 FLORIANO MARTINS, POETA E DEMIURGO [Claudio Willer]
2020 | DIÁLOGO CON FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Berta Lucía Estrada]
2020 | FLORIANO MARTINS: Todos somos marginados a la sombra de lo desconocido | [Entrevista concedida a Elys Regina Zils]
2020 UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Anna Apolinário & Demetrios Galvão]
2021 UNA PRESENTACIÓN DE LA OBRA DE FLORIANO MARTINS [José Alcántara Almánzar]
2021 VOCAÇÃO DIALOGANTE [Entrevista concedida a Maria Estela Guedes]
2022 DE ITARARÉ A UMA DEAMBULAÇÃO CONTÍNUA: Conversa com Floriano Martins sobre o Surrealismo no Brasil [Entrevista concedida a Anderson Costa & Elys Regina Zils]
2023 | FLORIANO MARTINS E O MARAVILHOSO TUMULTO DE SUA VIDA | Roda de imprensa, várias vozes
2023 A OUTRA VOZ DO TEMPO: Cronologia de vida e obra [Preparada por Floriano Martins & Márcio Simões]
OBRA ENSAÍSTICA PUBLICADA
El corazón del infinito. Tres poetas brasileños. Trad. Jesús Cobo. Toledo: Cuadernos de Calandrajas, 1993.
Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Escrituras surrealistas. O começo da busca. Coleção Memo. Fundação Memorial da América Latina. São Paulo. 1998.
Alberto Nepomuceno. Edições FDR. Fortaleza. 2000.
O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2001.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. San José de Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2004.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. Caracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2008.
A inocência de Pensar. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2009.
Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica. 2 tomos. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2010.
Invenção do Brasil – Entrevistas [edição virtual]. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013.
Esfinge insurrecta – Poesía en Chile [edição virtual, em coautoria com Juan Cameron]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad. México: UACM – Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2015.
Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.
Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Laudelino Freire. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2018.
Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.
120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.
TRADUÇÕES
Poemas de amor, de Federico García Lorca. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.
A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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