quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | A volta da baleia Beluxa [escrito a quatro mãos com Zuca Sardan]



PRÓLOGO CONVENCIDO: UM TEATRO ATRACADO NA METAFÍSICA

 

FLORIANO | Dizia o Artaud que o teatro é uma arte do espaço que caindo sobre os quatro pontos cardeais corre o risco de tocar a vida. Em que momentos o teatro, segundo pensas, tocou a vida e em que circunstâncias esse toque se tornou impossível ou inviável?

 

ZUCA | O Teatro, a Arte Rupestre, a Música e os Cantos, a Dança, vêm da Pré-história, manifestações primordiais do Ser Humano, face ao Mistério do Mundo. Antes de querer explicar, o Homem se maravilhou face à grandiosidade do Mundo, o Sol, a Lua as Estrelas,… e… a Língua!… o que lhe abriu os caminhos do Mito e da Magia, e finalmente criou o próprio Homem… E não vice-versa: o Homem não criou as Artes e a Língua. Mas sim, a Língua e as Artes criaram o Homem. O Teatro faz parte da vida, e nasceu com a Metaphysica, na Pré-história, com os ritos dos Homens fascinados com a maravilha do Cosmos.

 

FLORIANO | A Metafísica, no entanto, acabou sendo devorada pela Moral, tendo o mundo desde então mergulhado em uma racionalidade caprichosa. Os caprichos são as cortinas de fumaça que o Homem inventou para nublar a percepção e situar-se distanciado do outro. Ionesco atalhou a questão aclarando que os sistemas de expressão não servem sempre para comunicar, servem frequentemente para esconder uma intenção. As ideologias são geralmente álibis e dissimulam, voluntariamente, coisa bem diferente da que elas proclamam. Por um efeito de folclorização da cultura o teatro perdeu a sua força mágica e converteu-se em mero espetáculo.

 

ZUCA | Foi justamente o que o Ionesco fez numa genial manobra de contra-vapor. Usou a galhofa pra desmascarar a seriedade plastificada das verdades definitivas das autoridades que queriam usar a galhofa comercializada meramente pra arrematar, dar a última pá de cal na robotização distinta da população mais esclarecida corretamente engajada pelas luzes da ideologia hierárquica.

 

FLORIANO | Como ele próprio recorda, a sua estratégia não funcionou em grande parte porque a crítica dramática da época herdou a mentalidade de boulevard, foi descaracterizando a seriedade do teatro de vanguarda. Mas é fato que a sociedade como um todo, corneada – para usar um termo caro ao Salvador Dalí – pela beligerância arrogante do Capitalismo e do Comunismo, derrapou em crises longe de uma essência humanística, e com isto as Artes se bandearam – em parte como refúgio, em parte como ato dessacralizado – para os porões das Ciências e das Religiões.

 

ZUCA | Deixando as Artes nos porões, as Ciências e as Religiões iam em carruagens separadas para os castelos das Autoridades dos Dois Mundos Rivais, que aprontavam um teatro de Guerra Iminente, para que suas respectivas Sociedades se embandeirassem de patriotas e aceitassem que a Ordem precisava, a contragosto, soltar umas borrachadas suasórias nos rebeldes mais assanhados, que não compreendiam a gravidade do momento e aprontavam constrangedoras manifas desaforadas de protesto. Mas o bem encenado Teatro acabou com o desabamento do Bloco de Varsóvia, e o Capitalismo transformado em Deusa da Liberdade, criou a Globalização, para que as populações de todos os Países se unissem até formar o Mercado Comum, e o Consumo se alastrasse do Polo Norte ao Polo Sul.

 

FLORIANO | Caídos os dois impérios, os dois túmulos foram revirados a todo vapor e fedem até hoje, ainda dividindo o mundo em cicatrizes incuráveis, verdadeiras fístulas. Um mundo de essências desfiguradas, onde os espelhos já não mostram a devida máscara de ninguém. Em meio a isto, nós dois reatamos uma conjugação de forças de tom Metafísico e Patafísico, ou seja, um teatro que soma vários recursos das vanguardas, ligados à sátira, ao humor negro e àquela épica desmitologizada defendida pelo poeta e dramaturgo nicaraguense Pablo Antonio Cuadra. Nossa carroça, no entanto, percorre a floresta sem condições de montagem e nossas vozes já não repercutem como bem poderiam.

 

ZUCA | Precisamos de um megafone, e umas caboclas pra dançar… um tocador de tambor e… solta no terreiro, uma armação com guichet de janelinha, e, do outro lado, Leonor vende os bilhetes… logo aparece um pouco de gente… Se sair porrada na boca do guichet, os jornais locais botam em manchete, e, no dia seguinte, teremos um recorde de público, cadeiras e camarotes lotados, pivetes e trombadinhas pendurados nas cortinas e candelabros…

 

FLORIANO | Nossos dois protagonistas ocultos: o ponto e a cortina, eles regem a orquestra de improvisos e tiram da manga e de fundos falsos os personagens de cada cena, com seus paradoxos e sarcasmos, suas premonições e alucinações, transformando a realidade no que ela menos suporta, ou seja, nela mesma.

 

 

AS FABULOSAS LAGARTAS PINTADAS

 


FRONTOSPÍCIO

DOUTOR PASCALHA ANUNCIA O LANÇAMENTO DE PEÇA SADO-LIBERTINA NO MANICÔMIO DE PATAKAWA

 

O diretor do manicômio de Patakawa, Dr. Pascalha, grande conhecedor da obra do Marquês de Sade, se interessou vivamente pelo livro Oráculos profanos, de Zuca Sardan e Floriano Martins, e decidiu montar uma de suas peças – cujo título ainda mantém em segredo – no auditório do Manicômio, para os seus pacientes, e tenciona inclusive convidar Martins para ser o diretor de encenação da porno-libertina mostra de Guinhol Automático. O assessor do Pascalha, Dr. Franela, tentará chamá-lo à razão.

 

FRANELA

Mas Doutor Pascalha, isso é obra de dois loucos furiosos!… O Senhor leu o prefácio?…

 

PASCALHA

Li o livro todo, de um fôlego só, Franela, é obra de gênio, uma obra digna do Marquês de Sade!…

 

FRANELA

Mas Doutor Pascalha… esse livro é uma porcalhada de psicopata, é coisa de louco… causará um trauma em nossos pacientes…

 

PASCALHA

Justamente, Franela, é obra de catarse para os nossos loucos, de que muitos sairão curados, sobretudo os que trabalharem de atores no capolavoro.

 

FRANELA

É verdade, Doutor Pascalha, o Senhor tem toda a razão… com louco não se discute… Direi logo ao editor que cuide dos papéis…

 

I. E ASSIM PASSAM OS PANOS

 

DOC FLOYD

Vou ao México, de onde nunca sei se volto. Quando ali estive pela primeira vez quase boto o fígado pela boca tentando chegar ao cume da pirâmide do sol. Anos depois consegui subir uma pirâmide menor, em Monte Albán.

 

ZUCA SARDAN

Da próxima, melhor subires a Pyrâmide Xapaka tem elevador com corda na grande roda com eixo de prata, puxada por campônios xiximecas.

 

DOC FLOYD

E subindo pelo centro da pirâmide pocotó-tepek o clima é bem gostoso.

 

ZUCA SARDAN

Faraó Osíris Xapok, aproveitando os avan§os da tecnologia, instalou sete possantes ventiladores com trombetas dentro da Pyrâmide, que criam um um espantoso torvelinho musical, que faz os visitantes entrarem em êxtase mystico, e pronunciarem oráculos indecifráveis.

 

DOC FLOYD

Com uma acústica tão refinada que na medida em que sobe (a descida é por fora da Pyramide) o elevador gera um efeito distinto dos demais, como uma espiral de sons, um mantra ondulado.

 

ZUCA SARDAN

Faraó Osiris Xapok, e sua Faroletta Dolores, são um casal progressivo que incentiva as artes na região das Pyrâmides. Famosas são as corridas de cavalos com tiroteios, para furar uma bola de futebol suspensa por cordel num obelisco. Boleros de Agostín Lara na voz soluçada de Pancho Solis, ao som de guarachas multi-seculares, ressoam nas cálidas noites mexicanas.

 

DOC FLOYD

(À sombra de um bolero sem alça)

Osiris levava sempre o sol dentro do bolso

e com ele mantinha sua Dolores aquecida.

Ela lambia o sol como uma fruta tropical,

e aos boleros de Lara entregava a sua vida.

 

ZUCA SARDAN

E así pasan los anhos… chaca-chaca-chaca… y yo que te pregunto, Dolores de mis amores, y tu que me respuendes… “ay que sí, ay que nô” y me arrastras y arrastas en ciega pasión…

 

DOC FLOYD

Osiris acabou cego de tudo, porém nada lhe entornou a felicidade, passou a ver com os olhos de seu amor, Osiris passou a estar em tudo que ela via, Dolores lhe revelou a senha da gravidade.

 

ZUCA SARDAN

Osiris chega de elevador ao último andar da Pyrâmide, tateia a porta de seu gabinete. Entra, fecha a porta, tira o zoclos pretos, bota no cabide a bengala branca e saúda a Secretária: “Bom dia Dona Mazzoca… como vão as coisas?…” “Sucesso absoluto, Dom Osíris!!! A fila dá sete voltas da pyrâmide para chegar ao guichet!!!” “Muito bem, Dona Mazzoca… Temos de continuar a manter o Mytho, com o mais absoluto segredo. Ocultismo total…

 

DOC FLOYD

Dona Mazzoca arregalou os olhos ao ouvir falar em Ocultismo Total, sorrateiramente saiu de sua boca uma língua volumosa e inspirada. Patranzinho, não era o caso de se criar uma escola de ocultismo aqui no alto do morro Ocultepek?

 

ZUCA SARDAN

Sendo o Ocultismo uma prática oculta, talvez já exista aqui no morro Ocultek, mas ninguém sabe disso… Porque seus praticantes jamais diriam uma palavra sobre isso, e muitos deles, por prudência, e despistamento, adotariam outras idologias, muitas delas, aliás, contra o Ocultismo.

 

DOC FLOYD

Soube agora, isto por um sobrinho, católico fervoroso disfarçado de hare krishna, que demais ideologias e também suas religiões filiadas, há muito utilizam igual estratégia, de modo que já não sabemos quem é quem, qualquer que seja o fruto de sua presença entre nós. de tal modo que o mundo, por mais que fale, já não nos diz lé-com-cré…

 

ZUCA SARDAN

Talvez teu sobrinho, ao final, tenha se tornado um hare krishna que usa o disfarce de católico fervoroso disfarçado de hare krishna…

 

DOC FLOYD

Uma manada de nuvens lhe acompanhou por todo o regresso, a janela do avião lhe sussurrando que saltasse dali e fosse viver acabanado no coração daquela salina celeste. Seria ele? Seria eu? Desperto dessa visão segurando o pacotinho de sal, a ponto de colocá-lo no chá…

 

II. FALSO TORMENTO DA REALIDADE

 

DOC FLOYD

Está concluída? Creio que sim. Tenho que reunir nossos últimos escritos, por vezes penso que daria uma boa antologia a ser publicada, já verei, já verei…

 

ZUCA SARDAN

Sim, sim, está bem concluída. Tangas e Zcrita-Cordel, melhor curtas… A curtíssima tem a vantagem de ser mais apetecível pras novíssimas gerações. E uma Antologia também é atrativa, justamente quando é constituída de curtíssimas, argumentadas com cartuns.

 

DOC FLOYD

Navalha bem limpinha e pronta para descascar o olho oculto do mais severo leitor de Pompéia.

 

ZUCA SARDAN

O Sentinela de Pompéia sempre alerta, usa monoklo e patins para correr quando explodir o Vesúvio.

 

DOC FLOYD

O Sentinela de Pompéia deu nome a um planfletinho que circulava pelas ruas em zombaria de tudo quanto era lei lacrimosa e títulos de nobreza…

 

ZUCA SARDAN

Enquanto o Sentinela Dirceu Vão Bestoide lia do Lenin o tabloide Vesúvio comeu Pompéia.

 

DOC FLOYD

Alheio à tragédia que causara

Vesúvio cantarolava uma trova

ao ritmo de seu cachimbo que

dizia não crer em choro ou vela.

 

ZUCA SARDAN

Não acabou a trova, o desditoso

sentinela trovador, cantando

arrastado em cruel torvelinho

pelas larvas incandescentes.

 

DOC FLOYD

Não acabou o trago, o sonâmbulo

metafísico de bengala, aos cinco

ventos anunciou que uma vez a cada

cem anos uma fênix seduz o fogo.

 

ZUCA SARDAN

Não sei se ainda terei tempo de ver essa fênix duas vezes. O Oscar Niemeyer poderá ter visto, mas da primeira vez ainda estava de fraldas, e não lembrava mais…

 

DOC FLOYD

Sem falar naquela parcela da população que finge que não vê a Fênix, ou a confunde com a ave negra de Hollywood.

 

ZUCA SARDAN

Em matéria de não ver (com os próprios olhos) a Parcela da população é quase maior que a população total… a Parcela não quer ver nada por conta própria, só acredita no que os Locutores de Tevê lhes contam… Os Locutores Tevê são os Grandes Sacerdotes da Revelação do Mundo Quadrado… os grandes desastres ecológicos, que estamos assistindo, são devidos aos esforços tectônicos do Globo, em adquirir uma forma de hexaedro, para melhor se adaptar aos aparelhos receptores Tevê.

 

DOC FLOYD

A Grande Rebelião das Fibras Óticas começa a mostrar um mundo bem distinto do real, embora já não caiba importância à realidade comprovada, tendo ganho o pleito forjado a realidade condicional. Qualquer mestre de vigarices facilmente convence sua plateia da forma que bem quiser dar ao globo e suas sombras.

 

III. O CASO DA BENGALA ESQUARTEJADA

 

Quero a miiiinha bengala de volta!…

É do século XIX, e tem uma formosa

sereia de prata, esculpida no castão…

E duas iniciais: TL, de seu antigo dono.

 

O branco deu no galo

O galo deu na luz

Requebra o castiçal

Nenhum vento satisfaz

A bengala do Sardan

Deu um salto na lagoa

Dona Sapa desfalece

Tropeçando no aguidar

 

Cai lentamente a cortina…

 

A cortina lentamente

Deu um curta no cenário

Querubins pra todo lado

Zonearam o chimarrão

Toque um fado, toque um tango

Não importa a dor que doa

Saltimbancos no telhado

A cortina foi pro brejo

 

GERENTE

PLATÉIA AGITADA!!! É isso que queremos!!!… MAIS!!! MAIS!! MAIS!!!

 

JUVENTUDE REBELDE

MAIS!!! MAIS!!! MAIS!!!

 

GERTRUDE

(sottovoce) Vamos sair de mansinho, Gaspar, ou essa juventude ensandecida nos trucida…

 

GASPAR

Não te preocupes, Gertrude, sou professor, sei como acalmar meus alunos… (trepa na cadeira e bate palmas) PLAFF-PLAFF… Atenção meus bravos jovens, Esperança derradeira de nosso conturbado Brasil… Ouçai lá…

 

Minha terra tem palmeiras

onde canta o sabiá…

Piripi… Piripi… Tatá…

 

Zé Fininho se abastece

De esperanças que falseiam

De um gole bebeu todo

O sangue da gueixa Sabiá

Vamos sair de mansinho

Disse a turba ao microfone

À nossa frente as palmeiras

Disfarçarão a debandada

 

GASPAR

(triunfante) Está vendo só, Gertrude… como minha retórica de veludo… acalmei a moçada…

 

GERTRUDE

Até aqui tudo bem, Gaspar, mas e a pobrezinha da Gueisha Sabiá?…

 

GASPAR

Não te preocupes… telefonarei pro Frade Feijão.

 

Ao sair da cabine telefônica

De seu poleiro confessional

Frade Feijão coçou as partes

A batina em grande amasso

Quem nunca viu desconhece

Quem viu – dizem – quer mais

Porém ninguém ousaria falar

Da cor do pecado filisteu

 

GERTRUDE

Gaspar, li hoje no jornal, um cronista religioso… que se referia, sem mencionar qual fosse, ao pecado filisteu. Sabes lá qual seja?…

 

GASPAR

Enfim, Gertrude, nunca são convenientes, as leituras sobre pecados… Bem melhor seria leres sobre as boas ações…

 

GERTRUDE

Tens razão, Gaspar… Melhor nos voltarmos a assuntos científicos… Aliás, li hoje no jornal, com ilustração na primeira página, de que os astrônomos conseguiram fotografar o Black Hole!!!… Um buraco preto colossal!!!

 

Negra peçonha do mundo

Estreita os laços do pecado

Fosse uma vestal revelaria

As suas sombras interditas

O mundo inteiro caberia

Na vastidão sagrada da foto

Sentenciaria então o big bang

A um acorde de gazes do mistério

 

GERTRUDE

Que disseste lá, Gaspar??? Estavas de olhar esgazeado, e voz cavernosa…

 

GASPAR

Eu não disse nada, Gertrude… estas tuas leituras de pecados filisteus e buracos pretos estão a te embananar os miolos… melhor será a sessão culinária.

 

GERTRUDE

Embalsamar?…

 

GASPAR

EM… BANANAR

 

Espólio de bananas embalsamadas

E peixes ruminando pérolas gastas

A noite lustrava a prata das luas

Espelhando as naturezas mortas

Melhor servir na bandeja o zoo

de nossas visões metamorfoseadas

O galo engasgado com as manhãs

Pardais cuspindo fora suas casas

 

GASPAR

Agora eu ouvi!!! És tu mesma!!! que falas essas tenebrosas coisas com voz gutural!!!… Estás possessa, Gertrude!!!… Ai!!! Céus!!!… a voragem do Inferno!!!

 

GERTRUDE

(olhos revirados, sorriso satânico) Isso mesmo, meu gostoso enrustidão… Mas desta vez não escapas… agora, debaixo desta árvore frondosa… vou tirar teu cabacinho, meu amor de perdição… (dá um salto de onça)

 

GASPAR

(com Gertrude grudada, por cima) Enlouqueceste, Gertrude?… Há décadas casadinhos felizes e agora… ai!! que tu me esfolas!!! Ai!!! Vais me matar!!!

 

FREI FEIJÃO

(chega, assustado)- Céus!! Dona Gertrude está possuída pelo Diabo!!! Vou exorcizá-la!!!…

 

GASPAR

(voz agônica) Chegastes tarde, oh, Frei Feijão!!!… Agora deixa ela me matar… Vai-te embora, sacão… deixa eu morrer e… GOZZZARRRRRRRRRRRRRRR!!!

 

FREI FEIJÃO

(apavorado, sai correndo)- Ai, Socorro!!!…

 

PANO

(cai) PLAFFFFF!!! (Ouve-se a 4ª Fuga de Bach)

 

Cai a anágua do Feijão travestido

Cai o verbo desencarnando-se

Cai a pedra suspensa por Magritte

Cai o último espelho enrugado

E a prece dos vigários saltimbancos

E o culto das megeras parideiras

E a maçã na cabeça oca da ciência

E o moto perpétuo impresso no pano

 

Mas a cortina ah a cortina essa não cai…

 

GASPAR

(gemendo) Ai… Fertrude… Ai… me mata mais um pouquinho… AAAiii…

 

GERTRUDE

Fertrude, não, Gaspar… Gertrude é o meu nome!… Estás endoidecendo…

 

GASPAR

Endoidecendo de gooozo, minha fera Fertrude… me esfola… me mata mais um pouco…

 

GERTRUDE

Não posso fazer mais, porque a cortina está levantada, a plateia começa a reclamar…

 

BOAS FAMÍLIAS

Ai, que horror!!! Peça do Gelson Bromires!!! Telefonem pra polícia!!!

 

CORTINA

(discreta, baixa um pouquinho) Fung-Fung-Fung…

 

GALERA PESADA

Qualé??? Quem é o basbaque que está baixando a cortina? Pega!!!

 

TURMA GROSSA

Pega esse bedel de bosta!!! Vamos quebrar-lhe a cara!!!

 

CORTINA

(assustada sobe depressa) Fong-Fong-Fong…

 

GERTRUDE

(montada no supliciado) Ai, Gaspar, a cortina subiu de novo!…

 

GASPAR

Dane-se a cortina, Fertrude, manda brasa, me mata, me trucida, Ai.Ao.AAAUUUUUUU!!!

 

Um cavalo assustado

Uma pele azunhada

Um potinho de mel

A vida passa ligeiro

Quem vê lá de cima

Logo pensa em cair

Quem vê lá de baixo

Quer mais quer mais

 

Doramundo, um saltério

Lhe puseram nas mãos

Ficou cego e azulado

Um improviso atrás de outro

Quando veio para casa

Recusou-se a entrar

Até hoje o destino

Cantarola agachado

 

GASPAR

(tombado, abre os olhos) Ai… Gertrude, que se passou.

 

GERTRUDE

Ai, meu bem, você tropeçou caiu, e ciscou a roncar.

 

GASPAR

(desconfiado)- Mas… porque não me acordaste?…

 

GERTRUDE

Você estava com um ar tão feliz, que achei melhor deixar você dormindo.

 

GASPAR

Mas… e a peça, Gertrude, já acabou…?

 

GERTRUDE

Esta peça nunca jamais se acabará, Gaspar…

 

GASPAR

(preocupado) Não se acabará? E por que??

 

GERTRUDE

Porque a cortina cai e torna a subir, cai e torna a subir…

 

GASPAR

(estala os dedos) Plec! plec! Já sei, vou telefonar pro João Batista.

 

GERTRUDE

O tocador de gongo?

 

GASPAR

Exato, Gertrude… Estou seguro que é ele que está escrevendo esta peça…

 

GERTRUDE

O… Armagedom?…

 

GASPAR

Esse mesmo, Gertrude, vou telefonar e pedir-lhe que venha com seu gongo…

 

GERTRUDE

E se ele tocar o gongo?…

 

GASPAR

Acaba-se o Mundo, e acabando-se o uindo…

 

GERTRUDE

…acaba-se a Peça?… Duvido

 

GASPAR

Ouço seus passos… Presto, Gertrude, vamos fugir antes que ele chegue e toque o gongo!… (saem Gapar e Gertrude, entra João Batista de tanga e turbante, coloca o Gongo no palco, alça o bastão e, solene, belíssimo gesto, gira o instrumento… e…) GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNGGGGGGGGGG!!!

 

GALERA PESADA

Parece que agora puseram o enredo no saco…

 

TURMA GROSSA

E nunca se soube o paradeiro da bengala…

 

IV. QUANTA LARANJA MADURA, QUANTO LIMÃO PELO CHÃO

 

Entra em cena o Belchior:

 

Não cante vitória muito cedo, não / Nem leve flores para a cova do inimigo. / As lágrimas dos jovens são fortes como um segredo, / podem fazer renascer um mal antigo.

 

PLATEIA

(de pé) Bravoooo!!! Viva o Belchior!!! Dá-lhe Belchior!!! Senta, macacada!!! Bravooo Melchior!!!

 

FÃ DE BELCHIOR NA FILEIRA DA FRENTE

Merchior, que sempre foi um carrancudo sem sentido algum de humor, fez cara de ainda mais bravo e disse: a juventude é puro fogo de palha. Somente a maturidade pode salvar o mundo… Ploft, alguém lhe deu com uma carabina no meio do quengo.

 

PLATEIA

(em furor herculeano) Bandido!, matou o Merchior!!! Pega!!! Pega Mata e Come!!!

 

Pandemônio generalizado, o Gerente do Teatro entra e pede calma:

 

GERENTE

Podem se esmurrar!!! Nos cornos!! Nos bagos!!!! Mata!!! Mas cuidado com as cadeiras do Teatro, e os archotes!!! Quebrem-se ossos, mas… não quebrem o nosso Teatro Lux, que sempre lhes traz Comédias, Rastapés, Fandangos e Rancheiras!!!..

 

GIVALDO, O PONTO DESEMPREGADO

O estropício transcende o espaço de representação que constitui o teatro. Dois palhaços recolhem as vísceras e a sombra estraçalhada do morto. Um pouco de sátira e humor negro é o que precisamos para suportar os panfletos lúgubres da realidade…

 

GERENTE

Um pouco de sangue sem transfusão, um Drácula velho com dentadura de aço, uma piranha no aquário: “Dê-lhe um naco de pãozinho na boca, Dolores…”

 

O FÃ

Um pouco de sal na panela, à espera da entrada em cena da galinha-de-angola. Seus dentes nasceram há pouco, apesar da falta de fé de seus perseguidores. Parte do mundo por vezes cai fora da cartilha, e o que se perde é sempre o ganho maior.

 

GIVALDO

Se cai fora da cartilha, será a do Colégio Malek Scolares, o mais científico e vai-pra-frente educandário, preferido pelas famílias progressistas.

 

O FÃ

Mas ninguém quer ficar fora da panela. A partir daí é que as cartilhas perderam um pouco a influência sobre os corpos terrestres. Essa gente detesta Einstein, mas vivem à sombra da relatividade.

 

GERENTE

Detestam nada… no máxmo, fingem… Quando o Einstein aparece botando a língua, todos adoram… até quando colocam a foto de Bomba Atômica ao lado, ex-plo-din-dooooooo… em Giroshima… ou Sakazake… Sucesso garantido… em todas as revistas e jornais.

 

O FÃ

Quem lucra com isto é João Borzeguim e sua banca de revistas plantada no coração da Praça das Três Pistas… - Ô menina, abre logo outro pacote…

 

GERENTE

Pois é… Sigamos nós pela sombra das mangueiras… e que se vire lá como possa a Gorda de Saragossa.

 

Saindo de cena o Belchior:

 

E a nossa esperança de jovens não aconteceu…

 

V. ONDE FICARÁ O ACRE?

 

DOC FLOYD

Soube agora que seremos convidados para gravar uma entrevista para a TV Aurora. Certamente nos indagarão, logo de início, como passamos o dia.

 

ZUCA SARDAN

A Tevê Aurora sempre tem programas instigantes pra nossa saudável Juventude… e testes educativos, verbi gratia: Quantas estrelas tem a Bandeira do Brasil?…

 

DOC FLOYD

Curiosamente a bandeira do Brasil tem 0 DF na parte de cima e 25 estados na parte de baixo, ou melhor, são 26, porém um deles é tão minúsculo (ou apagado) que quase não se nota. TV Autora pergunta: qual é o estado que quase não se identifica na bandeira?

 

REITOR PANDARECOS

O Acre, de que a estrela é pretinha, em homenagem à Marina, nossa caboclinha valente.

 

ZUCA SARDAN

Quantos acres de terra foram usados na invenção do Acre?

 

DOC FLOYD

Porém quando lá chegaram os cearenses, graças a seus estudos naturais de miscigenação, todos foram para a cama e então surgiram os acreanos.

 

ZUCA SARDAN

Uma explicação freudiana da miscigenação racial luso-tropical no Brasil. Mas em Portugal, só o Marquês de Pombal saberia explicar.

DOC FLOYD

Orixás e deuses tupis se misturaram na clareira onde foi rezada a primeira missa. Oswald de Andrade fez disto uma piada, seguido pelo cinema nacional, porém as verdades sempre se fizeram descascando o milharal das mentiras.

 

ZUCA SARDAN

Sei de fonte segura, que havia sacis também na clareira, fumando seus cachimbinhos. O quadro do Vitor Meirelles tem sabor, mas ele não ousou pintar os espíritos da mata, porque em seu tempo a Inquisição, discreta embora, seguia patrulhando. Cassiano Ricardo avançou, mas se limitou aos papagaios…

 

DOC FLOYD

Quem avançou foi o Bopp, em sua canoa de mil proas, ao semear ímãs na floresta e animar a festança dos três reinos. Se a canoa não virou foi porque nunca parou de remar. Nosso conquistador de maravilhas.

 

ZUCA SARDAN

Quanto mais o tempo passa, melhor o Bopp!… O Cobra Norato vai se destacando cada vez mais como um dos maiores capolavoros da turna de 22. E vai ficando cada vez melhor.

 

DOC FLOYD

Desde as terras de dentro do Rosa que não se via um acre poético tão ciente das origens e do que se pode fazer com elas. A essência de nossa cultura está onde se insiste em não buscar.

 

VI. O OITAVO CIRCO

 

A sereia trouxe Para Netuno a Gazetta Marinha, com a misteriosa notícia, em manchete de primeira página. A notícia foi passada à redação do tabloide submarino pela própria Parteira. Em entrevista-relâmpago, emocionada, a parteira foi logo declarando que jamais viu criança tão inteligente, já nasceu falando e respondia a toda pergunta que lhe fizessem os surrealistas…

 

JORNALISTA

A Parteira Pirandola, pra se fazer interessante, inventou essas farofadas… A criança deu tão só uns mugidinhos…

 

PIRANDOLA

O Senhor é um jornalista meio singelo, com uma filosofiazinha indigente… certamente um positivista?…

 

JORNALISTA

Sou marxista.

 

PIRANDOLA

Exatamente. Era isso mesmo que eu estava pensando, mas por delicadeza não quis dizer.

 

GENERAL

(entra meditativo a cavalo e murmura, em voz plangente) Bons tempos o do Augusto…

 

CIVIL

(entra de mansinho, faz rapapé, tira o chapéu) Os tempos do concretismo, General?

 

GENERAL

Não, meu filho, os tempos do Po-si-ti-vismo, a sabedria, a ordem, do Augusto…

 

CIVIL

Pois é, Marechal, o Concretismo…

 

GENERAL

Se não me tivesses promovido a Marechal, estarias preso, meu bom rapaz… As ironias da Sorte!… Ser promovido por um amável passante… que nada entende do Positivismo… Até à vista, rapaz (Civil tira o chapéu, Marechal vai se afastando a cavalo)

 

VOZ DE FUNDO

E o Sol vai tombando no mar…

Dois sapinhos que estavam ali por perto, debaixo de uma frondosa touceira da enigmática cara-de-cavalo, desataram a rir, até que um deles disse ao outro: xingar o marxista de positivista é por uma pulga atrás de sua orelha, pois ele nunca vai entender a extensão pouco lisonjeira da sacanagem. É só na hora dizer bem sério: o senhor é um positivista. Os sapinhos descoravam de tanto rir. Um deles, mal contendo o riso, disse: Eis a outra face do mesmo espelho, dizer ao positivista que se acha marxista que ele não passa de um concretista. O civil, que de civilizado nada tinha, retruca: concertista? Ah viva a música! E o outro sapinho: três vivas à vaia, como diria o músico surdo para sua plateia vazia. Um dia a casa cai.

 

SOL

(enquanto isso, o Sol, ao crepúsculo, no mar cristalino, gemia, fazendo poses de elegante astro ferido, prestes a sucumbir, agitando a ruiva cabeleira e gemendo) Ai!… nunca morrer assim, num dia assado, pelas chamas de minha bela cabeleira…

 

SAPO ARGONAUTA

Outro sol, desidratado, pereceu em abandonado estábulo, quem lhe ouviu o último suspiro o comparou a um peixe na frigideira. Segundo o Lyceo Pytanga, o Sol nasce atrás da montanha, cruza o céu durante o dia, e à tardinha vai aos poucos caindo, afunda no mar. Cada dia o mesmo drama, uma barca o leva por um túnel submerso e no dia seguinte, ele torna a renascer, por trás da mesma montanha. Em outra cartilha, menos famosa, apócrifa, lemos que as montanhas, em noites de lua nova, costumam mudar de lugar, assim que o sol, ao despertar, aquele outro monte. Só o Poptaplek se recusa a mudar de lugar.

 

SAPO TROMBETEIRO

Nada no México muda de lugar…

 

SAPO ARGONAUTA

Viva Zapata!!! Pacacá Pacacá Bang-Bang-Bang

 

SAPO TROMBETEIRO

A terra estranha dos seres imóveis…

 

SAPO ARGONAUTA

Por isso mesmo o Zapata faz tal agitação.

 

SAPO TROMBETEIRO

Em matéria de desgraças, Brasil e México são complementares, o que falta em um o outro esbanja.

 

SAPO ARGONAUTA

É verdade… tua assertiva fulminante… é, de certo modo, um elogio a contravapor de tudo o que pensam, mas não dizem por amável discrição, os defensores das opiniões politicamente… plek-plek!… digamos… crentes… e eticamente convictas, sobre todos os maus abusos e boas ações na indústria e comércio, muito especialmente sobre a histórica alunissagem do foguetão da Otan num sítio praieiro da Lua…

 

SAPO TROMBETEIRO

O pirata Kubrick chegou a distribuir uma cartilha ensinando a todos como fazer no fundo do quintal uma réplica do pouso do homem na lua, com aqueles ângulos que só poderiam ser filmados por cinegrafistas fantasmas. Quem mora em apartamento até hoje não consegue lhe perdoar.

 

SAPO ARGONAUTA

Pergunte a qualquer estadista ou cientista europeu ou norte-americano, sobre as dúvidas levantadas por Kubrick e outros hereges, e eles sequer respondem. Trata-se de questão de DOGMA.

 

SAPO TROMBETEIRO

Enumere todas as falhas de caráter de Breton e indague acerca delas a qualquer surrealista e eles sequer respondem. O dogma é um baú sem fundo de caprichos…

 

SAPO ARGONAUTA

O-Ro-Roooooooooooooooooooooo… Despacito, senão a Patrulha, cogito, vem tacar fogo no nosso Circo… O que para ti não será la prima volta… o-ro-rooo…

 

SAPO TROMBETEIRO

A patrulha se engasga com sopa de cartilha, lancha pastéis de carne de alma e as noites são empanturradas de pesadelos: cadê o ralo que estava aqui? A patrulha é um prato vazio.

 

SAPO ARGONAUTA

A Patrulha Mundial?… Tomara que seja, tomara que estejam vazias… a Patrulha Moral – a Patrulha Política – a Patrulha Científica – a Patrulha artística e cultural – a Patrulha sobre os pequenos teimosos que cismam de discordar.

 

SAPO TROMBETEIRO

Não te esqueças que as vazias são as piores, porque sua ladainha é sempre a da proibição. Não pode rimar café com cafuné. Ou decantar o vinagre azedo das teses sobre o Império.

 

SAPO ARGONAUTA

Como diziam Padre Vieira e Fernando Passoa (e acho que também o Salazar)… o Quinto Império vem aí!…

 

SAPO TROMBETEIRO

Outros dizem que será difícil passar a era do Quinto dos Infernos…

 

SAPO ARGONAUTA

O Quinto Circo ainda passa… Pior mesmo é o Oitavo.

 

VII. DOIS VELHOS VAMPYROS

 

VELHO VAMPYRO 1

O que fazer com a nossa idade avançada?

 

VELHO VAMPYRO 2

Necessário escolher uma árvore meia escondida, mas não muito longe do vilarejo.

 

VELHO VAMPYRO 1

Sobretudo próxima da capela, pelo cheirinho das velas de mil orações e a pia batismal, cuja água é melhor do que a do tanque lá fora…

 

VELHO VAMPYRO 2

Sim, na capela temos boa água, e Frei Feijão nos dá um vale de indulgência, com direito a duas refeições, no total de seis por semana.

 

[CHARANGA NO CORETO DA CAPELA]

 

Foram três peruas tontas

tomar água na capela.

Uma delas se encantou

com o que viu no espelho d'água.

teve sonhos de cérbero

a safada da perua,

zombeteira como nunca

disse agora eu sou nós três

e vocês não são ninguém.

 

Saíram os dois velhos vampyros da sala de Frei Feijão, e toparam com as três peruas tontas, a tomar água na fonte batismal. Um dos velhos levou duas, e o outro levou a perua encantada. Ficaram os
cinco felizes, e o cineasta Patesco filmou-lhe a estória e ganhou o Primeiro Prêmio do Festival de Ravenna. À saída da sessão perguntaram a Dona Janyra, ladeada de seu marido Galibardo:

 

REPÓRTER

E que achou a Senhora do filme, Dona Janyra?


JANYRA

(de olhos marejados) Achei lindo lindo-lindo, finalmente um filme sadio, embargado de emoção, filme que acaba bem, com suave mensagem de paz… não é mesmo, Galibardo querido?…


GALIBARDO

Sim, parece trazer uma mensagem de Paz e Amor… Mas… melhor esperarmos até o Natal.

 

E saíram todos pela rua cantando regozijados com a fita: Vejam agora eu sou nós três / e vocês não são nenhuma. Assim a floresta se fechou e por ali não mais se viram as formosas três peruas, a iluminada toda exultante, ao ir embora disse às demais que seria a mais feliz, nem de longe estimando que o velho vampyro a poria em argolas, exibindo-a nas feiras de outros condados, a mil dobrões cada espiada. De qualquer modo, considerando que as duas outras foram direto para a panela, o melhor destino coube a ela.

 

ZUCA

Florio, acho que temos aí il magnifico finale!

 

FLORIO

Claro, pois não sobrou ninguém vivo, ah ah ah…

 

ZUCA

Não sobrou ninguém… no fogão manchado de sangue.

 

[SOBRAS DE ECO]

 

Vejam agora eu sou nós três / e vocês não são nenhuma.

 

ZUCA

Agora me bate uma dúvida: onde incluiremos este nosso auto natalino?

 

FLORIO

Verei se ainda cabe incluí-lo em nosso teatro repleto.

 

ZUCA

Pela quantidade de escritos de nosso teatro… talvez ainda dê espaço na contracapa.

 

FLORIO

Ou no dorso secreto… (espécie de fundo falso)

 

ZUCA

Um dorso secreto é uma tentação para guardar coisas muito ao contrário do que o livro conta… zombarias contra seus autores, e vulpinas críticas aos escritos… Um anti-livro do livro…

 

VIII. O MITO DESCABELADO

 

ZUCA SARDAN

Bengala com asas é coisa pra Hermes-Mercúrio… o famoso caduceu, de múltipla utilidade… O deus dos comerciantes e ladrões, está cada vez mais importante, com a Globalização…

 

DOC FLOYD

Também Netuno, envelhecido, mandou tatuar um par de asas em cada ombro. A cada noite o mal percorria o convés, e os marujos bebiam seu chá de assombro.

 

ZUCA SARDAN

Também Caronte frequenta os barcos, e vende aos marujos estampas de voluptuosas sereias, coisa que Netuno jamais faria. Caronte traz também uma série de artigos e quinquilharias, que lhes vende a preços razoáveis. Gostem ou não gostem, além das estampas das sereias, compram-lhe os marujos alguns badulaques, porque sabem que mais cedo ou mais tarde, estarão a bordo na barca do Velho Titan, que se irrita fácil, e lasca terríveis remadas nos passageiros mais imprudentes.

 

DOC FLOYD

Os barcos foram atracados, o rio foi fechado. Caronte se curva no balcão de uma taverna, completamente embriagado e ranzinza. Não lhe encoste ninguém a puxar conversa, que de suas barbas saltam faíscas indóceis e um rugido que faz tremer o mundo à sua volta.

 

ZUCA SARDAN

Caronte, no fundo, é dos raros sobreviventes do Mytho Pagão, depois de superado pelo Cristão… “Venceste, oh pálido Galileu!…” “O Grande Pan morreu!…” Só sobrou mesmo Plutão porque, havendo Paraíso, precisamos dum Inferno… E dele, justamente, o soberano era Plutão, que habilmente guardou seu trono… e pra recolher as almas condenadas, já havia o velho e experiente Caronte, que guardou assim seu posto. Mas sofre o velho Titan terríveis crises de depressão, que o levam, nas estadias, a procurar tabernas, e cair na bebedeira…

 

DOC FLOYD

Hoje o pobre titã se sente regra três de um inferno líquido, ressuscitando tangencialmente a cada amendoim mascado. Por vezes um vago supetão, e o balcão da taverna estremece, espantando os novos fregueses, enquanto os demais movimentam suas moedas em novas apostas…

 

ZUCA SARDAN

No Inferno:

(ZERPINA)

Veja só, Plutone, as infâmias que este pérfido eletro Agulha está soltando… está te chamando de pobre titã regra-três!

(PLUTONE)

(bocejão) Acho que o repórter está se referindo ao Caronte… E lá então… ele tem razão… A-RA-RA-RAAAAAAAA!!!…

 

DOC FLOYD

Todos os deuses são pérfidos e com seus cajados engabelam as aves do céu, os telhados da terra e as latas de sal que cruzam os mares. A humanidade de joelhos ante dogmas reza a mais obsoleta das orações.

 

ZUCA SARDAN

Os deuses têm de ser cruéis. Se forem bonzinhos… acabam mal.

 

IX. ONDE COMEÇOU O CARNAVAL

 

Tupy, nas maracas: Chacará Rachacá Cháchá…

Macaca Chita no carrilhão: splin-tilim, plit-spit, pin-pin…

 

Macaca aproveitou quo o sineiro Corcova estava dormindo… Corcova é surdo como uma porca… Macaca lambeu a terebentina com que Corcova limpava os badalos e ficou doidona, foi pro meio da avenida imaginária e lascou-se a sambar entusiasticamente. Como era o Carnaval, e estava todo mundo doido, acharam muito normal a Macaca dançar. Macaca fiou-se nisto e fez verdadeira orgia em um bananal, saindo de lá zonza e cantando:

 

a lagarta bem fumada salpicou meu coração

tanta banana me come que suspiro em oração

 

Ganhou logo o primeiro prêmio da canção do Sambódromo, e o Prefeito lhe ofereceu um cacho de bananas com um retrato autografado da Carmem Burana. Dizem que o descamba-enredo que quase lhe tomou o prêmio era O galo de Calcutá singrava os mares do sertão, composto por Jocélio das Mangas, estreante na comarca das alegorias.

O galo de Calcutá acabou afundando na panela do Trio Taquara, que convidou o Jocélio para o banquete. Dos ossos, secos e pilados, ele fez pacotinhos alucinógenos e distribuiu por toda a plateia. Sucesso extraordinário do show no banquete, o empresário Gordini contratou o Trio Taquara por uma fortuna colossal e o Galo de Calcutá liderou a Rita Parada por vários meses, com porrada no guichê a cada noite, o Teatro Fox lotado até às cumeeiras. O filósofo Doutor Fritz fez pesquisas profundas para desvendar o mistério da atração fanática das massas por tão medíocre espetáculo.

No gabinete do Dr. Fritz foi encontrada uma pasta que estampava o título OSSOS DA ESTRELA, cujo conteúdo dava sinais de uma investigação envolvendo suspeitos que estiveram no banquete de premiação e fotos de todos com os olhos esbugalhados ante o flash da câmara digital… Arturo Chimba, velho rábula, alardeava que não poderia haver assassinato sem cadáver, o que impedia a prisão de quaisquer dos suspeitos.

Berlock Xolmes, famoso detetive escocês, soltou três baforadas de seu cachimbo de jacarandá, e pontificou: sem cadáver não há processo de assassinato, mas ossos mastigados indicam um ato de deglutição Para não deixar indícios, o assassino teria devorado o cadáver esquivo, mas… cuspira os ossos fora.

Armada a confusão, toda gente tirou do bolso o que ainda restava do pacotinho de ossos e se apresentou inocentemente a Berlock na intenção de não ser considerada cúmplice de alguma ilegalidade. O rábula se apressou a defender a gente dizendo que todos tinham sido vítimas de um presente mal-intencionado, e que, caso necessário, poderia guardar os ossos, antes que chegassem as autoridades.

Telefonaram para o Delegado, que chegou acompanhado do Sargento que trazia três rosnantes molossos. Para não serem mordidos pelos molossos, tod’a gente passou seus ossos ao rábula, que presto os guardou nos sete bolsos. Os três molossos saltaram-lhe em cima, rasgaram os sete bolsos, devoraram os ossos e trucidaram o portador, por ter-lhes tentado enganar. E agora, pergunta Jocélio ao Berlock:

– Mas qual a moral dessa tétrica fábula, Seu Berlock?

Belock pigarreou e não teve dúvida: Se a fome lhe leva ao desespero, não deixe nada para depois.

 

Tupy, nas maracas: Chacará Rachacá Cháchá…

Macaca Chita no carrilhão: splin-tilim, plit-spit, pin-pin…

 

X. ENCUENTRO OPORTUNO

 

REITOR

Bueno, el encuentro

sobre una mesa de billar,

de una máquina de coser

y una obrera paraguaya…

 

OBRERA PARAGUAYA

A Liana Quadrita no le gustaba el billar,

sus noches mejor las pasaba cosendo

los mejores hilos de su imaginación,

y despertaba siempre más allá del mar.

 

REITOR

Magnífico, Floyd!… Sugiro ponga siempre un título, que valoriza la quadrita… La Quadrita es una dama pequeñita, aprazle portar un adorno para empalomarse…

 

OBRERA PARAGUAYA

Liana Quadrita sonha com títulos de nobreza,

saiu de casa bem cedo a conhecer muitas mesas,

desde então jurou a si mesma não cair em troça

de títulos sem elã, e sempre manter-se moça.

 

MÁQUINA DE COSER

Coisinha Difícil

 

OBRERA PARAGUAYA

Nem imaginas…

 

MÁQUINA DE COSER

Poizé…

 

OBRERA PARAGUAYA

Severino Poizé aprendeu nos Solimões

a pescar um peixe dentro de outro,

enrolava o rio como um ouroboros,

depois da pesca espremia uns limões.

 

MÁQUINA DE COSER

Isso também, pudera… ninguém é de ferro…

e temos Democracia, não estamos em Macau

e no Solimões os peixes são um colosso

um lambari até parece um bacalhau…

 

OBRERA PARAGUAYA

Omar Bacalhau é um pescador local,

ele me garantiu haver no Solimões

um bar de nome Democracia que serve

a melhor sopa de piranhas da região.

 

MÁQUINA DE COSER

Bem posso imaginar…

Mas se não são bem assadas

as piranhas comem a língua

dos comensais. Melhor

então pararmos por aqui.

 

OBRERA PARAGUAYA

[ g a r g a l h a d a s ] (ao som

do range-dentes das meninas)

 

XI. NA CADÊNCIA DO PRÊMIO

 

ZUCA SARDAN

Já chegaste? Ou estás falando do espaço intergaláctico, no teu jato rumo ao Brasil?…

 

DOC FLOYD

Estou na terra nada santa e nada firme.

 

BOSQUE

No Brasil tem um bosque

na Ilha Marajó

o Paraíso Perdido…

onde tudo comezzou

 

DOC FLOYD

Terra de jacuzzi & pitombeiras…

 

BOSQUE

No Brasil tem samba,

tem jabuti, tem canjerê…

faz que vai mas não vai

olê olê olelê

 

DOC FLOYD

Esse Jabuti tá contaminado, virou prêmio de péssima reputação…

 

ZUCA SARDAN

Precisa dum veterinário… Quem sabe dr. Osbaldo Cruz dá-lhe um jeito… Enquanto isso… um Prêmio Avestruz viria a calhar…

 

DOC FLOYD

Este sim, o prêmio sonhado, não para recebê-lo, mas sim para ver o premiado sem saber onde enterrar sua cabeça.

 

ZUCA SARDAN

O premiado escreveu um livro pornográfico ilustrado com fotos alusivas-explícitas e foi condenado pelo clero, a marinha e boas famílias. Já está na Rita Parada.

 

DOC FLOYD

O problema da Parada da Rita é a falta de critério, da qual todos se aproveitam. Os livros pornográficos, que um dia desbancaram os de autoajuda, agora se curvam diante do frisson em torno

das biografias, não importa de quem…

 

ZUCA SARDAN

A chave do sucesso total seria escrever um livro pornô com fotografias explicitando as várias posições, o que seria uma forma de autoajuda pros trepadores singelos se aperfeiçoarem, tudo isso incluído na biografia de um artista famoso da música popular. Besticela!!!

 

DOC FLOYD

A página 127 dessa decantada centúria revelava que a biografada a toda gente levava no bico, sem pagar seus direitos. Uma compositora mais famosa do que ela certa noite cobrou a dívida em pleno show.

 

ZUCA SARDAN

Os empresários caloteiros, sobretudo quando tratam com os inexperientes artistas, são piranhas de luxo.

 

DOC FLOYD

Não apenas os empresários, ou talvez eles aos poucos tenham aprendido com os artistas a manipular o saldo das propinas estéticas, expondo à venda o estoque de óleo de suas lanternas místicas. A plateia se retorce.

 

ZUCA SARDAN

E voam milhões e milhões de dólares, de Tóquio a Londres, de Londres a Nova York, de Nova York a Katar… e grandes gênios são hoje fabricantes de coelhos de ouro, totós de flores com oitenta metros de altura, e um quadro que se evaporou durante sua venda em leilão, na galeria de Londres. O comprador não reclamou, e levou os pregos que sobraram para colocar na sua pinacoteca.

 

DOC FLOYD

O Sindicato Internacional dos Rábulas está desnorteado, seus associados não conseguem mais estabelecer as diferenças entre as obras falsificadas e aquelas que são frutos de uma sincera diluição.

Deste modo o roubo perde sentido, pois os copistas impuseram novos paradigmas, sobretudo aqueles especializados em reproduzir assinaturas, considerando régua e compasso desse novo terrorismo.

 

ZUCA SARDAN

Com as técnicas internéticas, o roubo e a falsificação são inevitáveis. Só escapam do assalto as obras complicadas, porque o mercado global favoriza os pastelões-fáceis, os purgativos-sangrentos e os pornô-sentimentais.

 

DOC FLOYD

Porém as obras complicadas não escaparam da sanha dos copistas, que as exibem com seus narizes empinados afeitos à perene descoberta do fogo. Das cabeças de bois cuspindo vitupérios às latinhas de sopa de cabeça de peixe, os copistas distribuem suas receitas de fetiches, sempre longe das artes complexas, doadas ao silêncio.

 

ZUCA SARDAN

Mas chega o Andy Warhol, copia essas cópias talquais e… faz um sucesso estrondoso, em Nova York, Tokyo, Londres e Europa…

 

DOC FLOYD

Facilmente se comprovou o que há muito remendava a colcha da história, quão fácil era burlar a plateia minando a imaginação.

 

ZUCA SARDAN

As pessoas querem ser enganadas a sabendas… Assim se sentem mais seguras.

 

DOC FLOYD

Fiquem todos sabendo: O engano está por vir.

 

BATUQUE

A pedra dos males gorjeia

no tablado das miçangas.

Quem quer bacorinho pra janta

ronque até o sol raiar…

 

XII. PERERECAS VOADORAS

 

BANDA DE PRAÇA

Roca-Roca

Zaca-Traca

Firifim

Fon-Fon

 

DO OUTRO LADO DA PRAÇA

O trombone

se agiganta

no ouvido

da formiga.

 

Toca o fole

Marrequinha santa

O negro pastor

quer tirar da cartola

uma orquestra de rãs

 

ZÉ ALUVIÃO

Porque não pererecas

negro pastor da cartola

tirar porque não pererecas

da cartola tirar pastor

pererecas pererecas

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

A perereca da vizinha

anda solta no telhado

Basta o sol bater no quengo

ela pula pra todo lado

As perninhas dela

não conhecem fado

São do frevo mais puro

e saltam como pecados

 

ZÉ ALUVIÃO

A perereca da vizinha

sempre pula mais alto

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

É porque ela sabe onde se esconde o céu.

 

ZÉ ALUVIÃO

O céu se esconde atrás da porta.

Não adianta procurar porque ele sempre se esconde… do outro lado.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Mas as pererecas não procuraram o céu. Sabem onde ele se esconde e evitam desvirar as portas, cientes do fundo falso desses espelhos tão fortuitos…

 

ZÉ ALUVIÃO

E o que é o Mundo, e o Céu do Mundo, senão essa recorrente repetição de espelhos conjugados?… O Inferno é a barra que serve de eixo de rotação dos espelhos do Céu e da Terra, que, se colados um diante do outro, não refletem mais nada.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

No baile das noviças as pererecas entoavam cantos ocultos que evocavam o talento do Inferno por fazer com que os espelhos recuperassem a visão. Em um jogo astuto de palavras-valises, os cantos conduziam as noviças por estreitos labirintos, onde uma estranha e altíssima figura lhes abria os olhos para o mundo e o céu do mundo.

 

ZÉ ALUVIÃO

Mas Madre Marilda, experiente, lhes deu óculos de cego, com vidro preto, pra que não vissem as falsidades maldosas que aprontava a altíssima maléfica figura.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

O que Madre Marilda não previu é que óculos de cego permitem olhar apenas para dentro bem dentro, o que levou as noviças a inventarem um mundo próprio alheio à realidade.

 

ZÉ ALUVIÃO

Mas enfim, observou, Madre Marilda, se este mundo próprio é muito melhor que o mundo exterior, melhor mesmo que as noviças fiquem por lá.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Com o que o Condor não contava é que os mineiros que deram guarida às noviças há muito eram subornados por outra legendária figura, o Leão da Metro que, com um rugido único, desarvorou os cílios postiços e a peruca da Madre Marilda.

 

ZÉ ALUVIÃO

“Assim também não é possível”, reclama Madre Marilda, “mineiros subornados por um Leão de chanchadas…”

“Pior seria se fosse leão do Dalí”

“Do Dalí? Dalí só tem lagostas e rinocerontes”…

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Leões Dalí não tem, porém, seus elefantes repovoam a terra, ora tocando tubas, ora levitando ou em caminhadas sedutoras em suas longas e finas patas. Há quem diga que Marilda posou nua ante a sedução implacável de seus tigres. Arte, Ciência e Religião afinaram em tais cenas seus rugidos.

 

ZÉ ALUVIÃO

Nessas afinações, ninguém melhor que o Dalí… Papa Benito encomendou-lhe uma última ceia, Dalí, em lembrança ao milagre da multiplicação dos peixes, empanturrou a mesa de lagostas vivas… O quadro se encontra guardado em algum armário do porão da Capela Sistina.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Nosso correspondente no Vaticano me garantiu que, por uma falha na manutenção, as lagostas famintas se devoraram entre si. Sobrou apenas uma, empanturrada pela gula, que acabou por ejetar um telefone, de imediato ligando para Benito, lhe dizendo: - As cicatrizes da fé a todo instante rebentam porque vocês negam a ficção de sua realidade. Benito deixou cair o telefone no chão e, antes de ser petrificado, escutamos ainda sua voz: Deus nos proteja da versão demoníaca de todo o reino da criação. Estátua!

 

ZÉ ALUVIÃO

O chefe do protocolo, vendo o Papa Benito transformado em estátua, telefonou para o genial escultor Michelanjo, no momento ocupado na criação de uma coleção de colossais escravos gigantes que se contorcem aprisionados em camisolões. Michel disse ao Cardeal, Deixai comigo… e minutos após irrompe na sala papal, e encontra Sua Santidade transformada em estátua. Rosna o Michel: Comigo não!!! Já te dou um jeito… E avança enfurecido de martelo alçado e brada PARLAAAAAA!!! E antes que viesse a martelada, ouve-se a voz do Papa desencantado: Grazzie Michelino!… Dominus Vobiscum.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Na outra margem do Atlântico, o poeta das gamelas vazias estala os dedos e deixa escapar com voz roufenha: Ah esses mistérios papais, diante do martelo toda a coragem se esvai e o cativeiro mais gentil não se arrisca em nome da verdade.

 

ZÉ ALUVIÃO

O dito blasfematório do poeta das gamelas foi transmitido via e-mail por Frei Feijão ao Vaticano, onde o serviço de segurança, leva ao conhecimento do Papa o texto desaforado. Don Benito lê a desfeita, e lágrimas marejam-lhe os olhos… Aí está… essas pobres ovelhas desgarradas não sabem o que dizem… Se soubessem… iriam melhorar pelo menos a ortografia…

 

BANDA DE PRAÇA

Roca-Roca

Zaca-Traca

Firifim

Fon-Fon

 

[POSTAGEM GRAVADA PELO PAPA PARA TODOS OS CELULARES]

 

O verbo por ser verbo não sabe fazer nada

Precisa da fé substantiva que dá sentido a tudo

Tudo ou nada, tudo ou nada, quem vira santo ou demônio

Sabe que um dia terá que recolher as fronteiras do mito

Para poder escrever uma nova oração que refaça o mundo

 

O MISTÉRIO DO CACHIMBO

Não creio que Papa Benito lerá o cachimbo que não era pássaro; mas a não responder os graves dilemas metafísicos do Século 21, presentes nos textos que queimam na fornalha do cachimbo… Frei Feijão entrará em implacável dilema existencial.

 

XIII. NAQUINHO DE NADA

 

ZUCA SARDAN

Saiu o pacotão com as mulheres surrealistas. Sorrisão feliz do Floyd, cercado pelas suas 21 musas… Cada uma mais charmosa e provocante que as outras… Elas estão felizes de serem lembradas!… Acabou a tyrania du Bereton…

 

DOC FLOYD

Pois é, de tanto surrar a canoa furada do Bretão, ainda vão dizer que meu livro é contra ele. De certa forma, ser contra Breton é um modo de ser a favor do Surrealismo. Nas minhas leituras não fazes ideias de quantas opiniões negativas acerca dele eu reuni, dá para fazer um livro só com elas. Agora mesmo, ao escrever o editorial da edição dedicada ao Leiria reproduzo uma carta do António Maria Lisboa para o Cesariny dizendo que há a necessidade de se erguer em Portugal um Surrealismo sem a sombra do Breton.

 

ZUCA SARDAN

O Papa foi, porém, santificado. Quem não for às procissões, começa a ser visto como sendo um perigoso herege… Dominvs Voviscvm. Zzzzzz

 

DOC FLOYD

Odaliscas bem treinadas dessantificam qualquer pajem de quermesse enquanto eunucos apetitosos

rasuram máscaras papais e mominas nas lojinhas suburbanas e explodem as gráficas santeiras…

 

ZUCA SARDAN

Justamente por isso, as gráficas santeiras estão superando as gráficas pornográficas, sem que estas possam compreender as razões… O-Ro-Roooooooooooooo…

 

DOC FLOYD

E aí está a razão: a mania descabelada de querer uma razão para tudo. Imagine sair em busca de uma boa razão para o rapaz que se excita mais com um santinho do que com a madre superiora se masturbando…

 

ZUCA SARDAN

Para achar uma razão, pelo menos plausível, seria preciso conhecer o rapaz, conhecer a madre superiora, e qual o tipo de inspira3ÃO de que estaria tomada, pra seu ato… sacrílego?… Tampouco isto poderíamos adiantar, sem conhecer pormenores do ato… e também… saber da superiora de seus motivos… místicos?… ou profanos?… E também ver como é a estampa do santinho…

 

DOC FLOYD

Além do que o tema pertence bem mais ao fofocódromo, qualquer que seja o santinho ou as moçoilas que se puseram a discutir o assunto na plana presumível do facebook.

 

ZUCA SARDAN

Mas o facebook é a igrejinha de hoje, para as orações da juventude. Com a vantagem, talvez, de que não tem padre, nem sacristão. E para as procissões, há hoje o facebook e os smartphones.

 

DOC FLOYD

E os ovos de páscoas derretendo na chapa quente das ilusões virtuais. Temos que aprender a voltar pelos caminhos ainda não percorridos. Nada como ter experiência de coisa alguma…

 

ZUCA SARDAN

Haverá caminho ainda não percorrido?

 

DOC FLOYD

Claro que sim, sempre há, posto que eles, os caminhos, são individuais (não vale apelar para as toalhinhas de centro de mesa), e até mesmo os já percorridos quase sempre têm algo um cadinho que seja diferente a mostrar.

 

ZUCA SARDAN

Os caminhos mais difíceis só mostram um pedacinho.

 

DOC FLOYD

Um naquinho de nada.

 

FIM

 

 

ASILO DE FARSAS

UMA PIRUETA FARSANTE EM 10 ACTOS

 

A lei não distingue o que é certo do que é errado. O próprio fato de existir uma lei já é, em si, um abuso. Por tais desmandos se caracteriza a espécie humana, que a todo instante se vê compelida a criar normas para suportar a própria existência.

PETRÔNIO CAFÉ PEQUENO

 

1. ACASO ATÁVICO

 

HERALDO (toca a trombeta)

TON-TOTOOOOOMMMMMMMM!!! Bom dia, Senhoras e Senhores ouvintes da Rádio Trombetta!!! Saiu notícia, no Correio Pampulha, de que a Escola Brejeira vai montar evento com boas cabeças buscadas do lado de fora de seus muros, debates gravados sobre idiossincrasias e anacronismos de nosso tempo.

 

FLOYD NIX

Ponho dúvidas, a começar pelas dívidas da Escola Brejeira, há muito não paga sequer seus cabeças-de-bagre formados em quinquilharias genéricas. As caboclas austeras agora só querem saber de pecados sem guarda.

 

DOC FUMEX

Diga-me, Nix: pecados sem guarda são certamente… os melhores?

 

FLOYD NIX

Não existem pecados melhores, Fumex. Todos são piores. Daí que tanto interesse eles despertem.

 

DOC FUMEX

Os pecados ligeiros são menos graves, mas não tão gostosos quanto os pecados imortais.

 

FLOYD NIX

Porém nada supera os pecados imorais. Aqueles que sonegam impostos e traficam pesticidas para manter as meninas na linha.

 

DOC FUMEX

Pecados phynanceiros são os mais apreciados pelo Príncipe do Mal, que guarda no Inferno um magnífico Castelo-Cassino para hospedar os magnatas.

 

FLOYD NIX

Fichas de osso de cabra, cartas de pelo de ariranha, mesas com pernas de camelo… Lucrativa ideia de tornar paradisíaco o Inferno. Será imenso o impacto sobre os pecadores avulsos.

 

DOC FUMEX

O Inferno só faz propaganda de seus horrores, mas não explica os paradoxos do Jardim das Delícias… Quanto ao Castelo-Cassino, mantém segredo hermético.

 

FLOYD NIX

Dá-lhe uma, dá-nos duas, toma lá a terceira… Os narizes empoeirados guardam segredo a sete chaves de cristal, ninguém sabe o que se passa no tubo gástrico das emendas oligárquicas. Patê D’Ambrósio cuidou bem de seus eunucos, decepados de orelhas e língua.

 

DOC FUMEX

Decepados de orelhas e língua, os eunucos de Patê d’Ambrósio não precisavam mais de ser capados. A advertência já fora forte demais…

 

FLOYD NIX

De força tamanha que valeu o abastecimento de silêncio em todo o Reino das Três Corcovas. Até mesmo nas salas de partos os bebês já sabiam o valor intransferível da fala muda.

 

DOC FUMEX

Os bebês mais safos não soltavam um pio… Quanto aos mais parvos, Doutor Lousada enfiava-lhes uma rolha na boca. Eram os chamados bebês-rolhas.

 

FLOYD NIX

Dileta família da cruz emborcada. Cresciam por todos os lados e se ramificavam no jornalismo, na política, nas artes. Não havia rebelião que contivesse esse surto religioso das rolhas-falantes.

 

DOC FUMEX

Em boca arrolhada não entra vinho… É preciso saca-rolhas. Os rapazes dasarrolhados passam a falar desbragadamente. Já as mocitas se mostram discretas. Na antiga Babilônia, a Deusa Ishtar mandava desarrolhar todo o mundo, para evitar constrangimentos. Aprontava festas sublimes. Num banquete de Baltazar, surgiu um anão desaforado que escreveu blasfêmias na parede: ESSADOF RAZATLAB!!! Os Magos da Caldéia não conseguiram decifrar a tenebrosa mensagem.

 

FLOYD NIX

Eram três os Magos de Plantão. Dura época em que toda a areia era destinada ao fabrico de taças para os vinhos de Ishtar e o sangue das meninas que, por efeito de uma mecânica quântica ainda rudimentar, mantinha afoita, como um papiro pronto para os anátemas cavilosos do Bardo das Trevas, a pele da Condessa Devassa. Não fosse essa escassez de areia um único espelho soprado na clandestinidade permitiria aos magos desvendar o grafite desaforado.

 

DOC FUMEX

Mas não houve tempo para maiores pesquisas, porque o Rio Eufrates enfurecido entrou pelo janelão da sala de banquete, onde se desenrolava escabrosa orgia, e carregou todo mundo, além dos móveis, baixelas de prata, candelabros e quitutes escadaria abaixo… Ishtar, como sempre irresponsável, saiu voando gargalhando da desgraça dos afogados, e foi dançar na ponta do obelisco do último andar da Torre de Babel. Safada, mas tão gostosinha, quem condená-la ousaria?…

 

FLOYD NIX

Prataria magna que espelhava a impudicícia de Ishtar, taças onde fazia repousar as hóstias lunares, brilhantes caixetas com sua coleção de cílios e pentelhos, bandejas manchadas com o sangue de seus convivas… Como poucas no Olimpo paralelo, ela sabia desvencilhar pecados das garras da clandestinidade. Em rara entrevista que deu ao Correio Pampulha, disse Ishtar que pretende criar inúmeras escolas de pecado, com cartilhas em vulgata seladas com seu brasão licencioso.

 

DOC FUMEX

Pois é, Floyd, a bem dizer, Ishtar não sossega… Mas com a vulgaridade da baixaria no mundo globalizado, creio que ela terá dificuldades em levar avante seu grandioso plano de criar a cultura da licenciosidade… O Povão não vai entender… Vai pensar que ela é uma perua louca de um programa da Tevê Lambada…

 

FLOYD NIX

Por isso o Curupira tem levado jeito em confundir a todos. Graças a ele a nossa história terá sempre os pés trocados.

 

2. COPA & FLERTE COM SURREALISMO


Anos depois de haverem participado da última viagem do Trem Carthago, Doc Fumex e Floyd Nix se encontraram na Padaria Progresso para uma aguinha Xambuquira, gelo e raspa de tangerina. Ao fundo a TV Pegada Atômica transmite o jogo Brasil x Bélgica:

 

DOC FUMEX

Enquanto vemos os jogos da Copa releio a poesia de nosso cubista tropical Vicente do Rego Monteiro, tão injustamente esquecido como quase tudo em nosso país… Quando nÃO esquecemos, deixamos que pegue fogo no Museu. Cobra Norato é um barato, é o pai do Tropicalismo.

 

FLOYD NIX

Naqueles tempos, se você saísse de terno sem gravata, ou saísse da igreja no meio do sermão… era linchado. Meu pai ia de terno e gravata para o cinema. Tarsila se torna assim a miss paraquedista da época.

 

DOC FUMEX

Realmente surrealista entre os modernistas, além de Murilo Mendes, é o Raul Bopp. Acho que poderíamos incluir no Surrealismo, ao lado do Jorge de Lima, o Nelson Rodrigues e o… Barão de Itararé, que foi o nosso Alfred Jarry, por geração espontânea.

 

FLOYD NIX

O sonho do Oswald Lelé era ser a encarnação do Bispo Sardinha. O mais perto que chegou foi exatamente a mordida na canela que lhe deu Tarsila. Bopp tem um bom livrinho em que narra o caos fumegante dos bastidores da Antropofagia. Todos comiam as canelas de todos.

 

DOC FUMEX

A entrada de Tarsila pela janela deve-se provavelmente à sua fase antropofágica, quando mordeu a perna do Oswald. A questão é saber se… ele gostou. Ela tinha o seu charme… Se fosse eu, não a trocaria jamais pela Pagu.

 

FLOYD NIX

Então agora, da antropofagia, só sobram, de autênticos, os índios Caetés… Depois do churrasco do Bispo, os Caetés passaram a falar latim. Mas este fato foi oculto pelas autoridades coloniais por ordem expressa do Palácio das Necessidades. Foi um golpe cruel na nossa nascente linguística.

 

DOC FUMEX

Ficamos entre o tupi e o latim. Latimos enxotando a latinidade. Com o tempo o latim virou pó. Dissemos adiós a nosotros. Só no Lyceo Pytanga o Reitor segue aperreando a molecada pra aprender a recitar e praguejar em latim.

 

FLOYD NIX

O Latim é um cachorro teimoso… Não nos deixa assim tão fácil. Assim como as cadeiras trancadas no pátio submerso da escola de jornalismo. Na portinhola com olhos vendados a boca ainda sussurrava o daqui ninguém passa com que se exigia do aluno a reza curta a rédea ostensiva…

 

DOC FUMEX

O latim não nos deixa nunca. Nós é que nos abandonamos. Moramos em casas suspensas sem quintal e não nos reconhecemos nos vizinhos. Nem temos com quem falar. O tempo foge de nós. Mas o latim é mesmo um cão teimoso. Jogue amanhã no 5, e amarre o cachorro pelos sete lados.

 

FLOYD NIX

Tenho plano maquiavélico… Vou comprar um papagaio, batizá-lo de Plotino… e deixá-lo de estágio num convento jesuíta com severas instruções de que só falem latim com o plumoso… Depois de dez anos de estágio, eu o trago pro meu gabinete.

 

DOC FUMEX

Prof. Plotino Currupaco pode ministrar cursos de latim relâmpago e tendo ele formação jesuítica pode reformular a etimologia indígena herdada de nossos ancestrais antes da Grande Gripe que os varreu da terra. O papagaio seria certamente o primeiro a aprender o latim, e nos ensinar. Falaríamos um latim extraordinário, com sotaque de papagaio.

 

FLOYD NIX

Após a Grande Gripe, quando a população já estava completamente dizimada, inventaram o Xarope Pylathos contra tosse, gripe e bronquite.

 

DOC FUMEX

Então já era tarde e a única invenção que vingou foi a metáfora de circunstâncias que propiciou a irradiação das colônias liliputianas. Digo, das colônias de mosquitos, que empestaram o Rio de Janeiro com febre amarela. Só Doutor Oswaldo Cruz, e seus indomáveis soldados mata-mosquitos, conseguiram vencer a resistência popular, e passaram a seringa em todo mundo. Entre mortos e feridos, os mosquitos acabaram sendo eliminados. E tudo acabou numa bela festa…

 

FLOYD NIX

…e um bom discurso do Imperador elogiando o patriótico sacrifício da população.

 

DOC FUMEX

Contudo, a população já se encontrava surda e o Imperador, temendo que espiões registrassem as entrelinhas de seu discurso, o fez com a mão cobrindo os lábios e… a parte superior das barbas, que iam até o umbigo.

 

FLOYD NIX

A moda do Imperador de tapar a boca para falar pegou na tevê. Até os jogadores de futebol, durante e até depois do jogo, tapam a boca pra conversar.

 

DOC FUMEX

Pura presunção, de ambos, de acharem que suas falas despertem algum interesse. O Craque no gramado sintético e o Imperador no torreão de seu Palácio em São Cristóvão, alheios a tudo. Naturalmente o Marechal vai protestar, alegando que a guerra dos Mata-Mosquitos foi depois que ele proclamou a República. Ora, o Marechal, pouco depois de sua espalhafatosa proclamação, abdicou… E a História não perdoa: quem vai ao vento, perde o assento.

 

FLOYD NIX

O Imperador encomendou uma roupa no alfaiate mago libanês para ficar invisível. Mas só a roupa ficou invisível. E o Rei… ficou nu. Mas, com suas barbas imensas, cobriu os chocalhos.

 

DOC FUMEX

O jogador encomendou uma torcida para gritar cada vez que ele fizesse gol, mas como o gol não saiu a torcida resolveu gritar mesmo assim… Mamãe eu quero… Mamãe!… Eu quero mamaaarrrrr!!! Me traz as tetas… me traz as tetas pro bebê não chorar…

 

FLOYD NIX

O craque, porém, pegou o grilo, jogou-o contra a parede e ploffftttttt!!! Sentou-lhe o martelo. O Imperador, por sua vez real, escolado político, ainda se demora entre variadas soluções. Enquanto não se decide, resolve viajar de Zepelim ao Egito, pra ir consultar a Esfynge.

 

DOC FUMEX

Ora, há um momento em que ambos se igualam, quando Imperador e goleador coçam atrás da orelha e descobrem que ali mora um grilo surdo e sábio, que em morse bem pausado aos dois transmite o irremediável carteado da solidão. O Imperador toca três vezes a sineta, aparece o poleá, a quem o Monarca diz Almir Bambelo, traz-me cá um martelo…

 

FLOYD NIX

Tamanha distância entre as duas reações propiciou o surgimento de uma geração a mais de grilos sábios que, a cada nascimento, punha na estreita mente do rei e do goleador uma culpa sorrateira por serem tão iguais e ao mesmo tempo tão distantes entre si. Ao goleador faltavam a barba majestosa, e ao Imperador faltavam as chuteiras

 

DOC FUMEX

As respostas se multiplicam sem eliminar as perguntas. Viva a pilha do gato. Jogue no 14 e cerque bem o gato que é ligeiro de pique e mestre de pulo.

 

FLOYD NIX

Pilha dos sete gatos, pra botar no meu ventilador. Ai !, se você fosse sincera, Aurora, veja só que bom que era…

 

DOC FUMEX

Há uma caixinha especial com metade de meia dúzia, que acompanha um jogo de felpudas almofadas. Uma afoita gatinha ronrona na foto da capa. Se você disser a fórmula certa Abra cadabra de cabra dabra… a gatinha aparece.

 

FLOYD NIX

Petekas saidinhas fazem piruetas enquanto os editores cruzam palavras no tabuleiro da Baiana Leocádia… na Praça Ferroviária. E lá vem o Marechal a cavalo, tentar de novo proclamar a República.

 

DOC FUMEX

Tome Elixir Eureka!!!… Revista Guapo Azteka… Não deixa cair a peteka.

 

FLOYD NIX

Os editores em geral não querem correr riscos. Puxam o relógio do bolso do colete, e dão corda… e dão corda…

 

DOC FUMEX

Editores correm de riscos. E fazem uma risca limitando suas ações… Creio que há uma escola onde aprendem a arte do capitalismo sem risco. Não será porventura o Lyceo Pytanga, onde o Reitor ensina-lhes um heroismo de Espartacas.

 

FLOYD NIX

Certamente num armazém portuga… com um retrato… de quem?… Será o Pessoa?…

 

DOC FUMEX

Lá bem no fundo do armazém, por trás de uns caixotes velhos temos a melhor Cubunquira.

 

FLOYD NIX

Boa, pra saborearmos com bolinhos de bacalhau, e lendo no Jornal dos Sports as mazelas do Vasco.

 

DOC FUMEX

GOOOOOLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLL DO VASCOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!

 

3. O INFERNO E SEUS PESCADORES

 

Floyd Nix e Doc Fumex tomavam a tradicional cerveja Caravaca e como sempre punham em dúvida que todas as tragédias devam mesmo ser clássicas.

 

FLOYD NIX

Precisamos ter um pouco de paciência com o bombástico jornalístico. O truque é ultrapassar incólume o tom determinístico da apresentação.

 

DOC FUMEX

A imprensa liquida o mundo na cepa da chamada. De um golpe só nos leva para bem longe do fato. A imprensa sempre se veste do mais puro engano. As manchetes jamais consideraram o vulto incontestável da realidade. São manobras, nada mais.

 

FLOYD NIX

Assum Preto por ali fazia ninho, ao buscar gravetos deu nas vistas o esconderijo das portas. Então as ensinou a cantar, até que se abriram para outros mundos.

 

DOC FUMEX

O Destino costuma não abrir mão e pegar-se com o fato de que todas as linhas já estavam bem ou mal traçadas, assim que mesmo as linhas do horizonte não eram senão um ardil para abocanhar os tolos de qualquer parte.

 

FLOYD NIX

Conversa de Camelot do Destino… Ele convence aos trouxas que as linhas já estavam marcadas, e assim ele não pode infelizmente fazer nada… Até o Destino, e o Diabo também, todos querem bancar bom rapaz.

 

DOC FUMEX

Estou experimentando a delícia de ter os dias contados! E mergulhar nos braços de uma monja deve ser a melhor das profanações.

 

FLOYD NIX

Vão os dois juntinhos pro Inferno… onde flutuarão abraçadinhos sobre Dante e Virgílio…

 

DOC FUMEX

O inferno se repete em números que já ninguém sabe contar. As horas perdidas combinam com as sombras que irão sangrar.

 

FLOYD NIX

Das três Viagens de Dante, justamente a do Inferno foi a que garantiu a sua Imortalidade.

 

DOC FUMEX

Os porcos e sua dieta severa de pérolas. Os mitos e seus vícios de pés trocados. Como exigir que o homem se refaça se ele habita apenas um punhado de terra?

 

FLOYD NIX

Melhor é não pedir nada, e deixar rolar…

 

DOC FUMEX

Eis o balanço insuperável das contradições. Tudo o que somos levados a pensar de Caim, deixa Abel constrangido. Pior ainda é quando nos deparamos com trios, quando a confusão se instaura: o trio é o melhor ardil do caos.

 

FLOYD NIX

O fracasso do Caim foi porque ele não sabia fingir… E muito menos enterrar.

 

DOC FUMEX

Veja a Santíssima Trindade e a partição do tempo. A primeira busca a Unidade. A segunda, o estigma da linearidade. Enquanto Caim tudo o que deveria ter feito era convocar as hienas famintas para dar sumiço ao corpo do defunto. Bem se percebe que, no fundo, Caim era um simplório, sem malícia, sem malemolência…

 

FLOYD NIX

A partição do tempo se imagina linear quando, na realidade, é circular, como desconfiam os relógios, e o Nietzsche. Tudo passa do futuro para o presente e do presente despenca no passado que segue aumentando… aumentando, já vai quase estourando!… Quando estourar, das duas uma: ou reverte para o presente, ou então… passa a ser o futuro. O que, no final de contas, é quase a mesma coisa.

 

DOC FUMEX

O que arruína o futuro é a falta de profetas… Com a televisão cascateando com profundo conhecimento ético e científico de tudo, os profetas não têm mais audiência. Só podem mesmo apostar nas corridas de cavalos ou trabalharem na meteorologia. Antigamente, sempre foram apoiados pelos escribas do futuro, que lhes prodigavam as melhores profecias. Mas atualmente, as televisoras querem as notícias para já.

 

FLOYD NIX

Fernando Pessoa, bebendo uma garrafa de vinho Gatão no Bar Murtinho, viu de repente o Monstrengo que sobrevoando sua mesa em círculos concêntricos, soltou em cima do vate uma mensagem profética. É a hora!, brada o Frunão, e garçom, Murtinho e clientes, todos se enfiaram debaixo das mesas ou atrás das cortinas.

 

DOC FUMEX

Do lado de lá da calçada outro bar abriga os brados que saíram de fininho ante o grito do apessoado Fernão e suas gaivotas cegas. O mundo correu pela casa, espavorido, dando sobras de provas de que a realidade havia sujado o poleiro da gangue das aves de rapina. O mundo só não fica mudo por sua intrigante coleção de anúncios com que se refaz de suas quedas. O mundo pode cair à vontade, porque tem a bunda redonda. Já a Lua, volta e meia se quebra.

 

FLOYD NIX

O garçom passou de bandeja tuas ideias para o Frunão, mas, entretanto, ele havia já emborcado o resto da garrafa, e estava entretido numa conversa chuchotada com Foffélia e o Gatto de Bottas, que se haviam entrementes escapado do rótulo do casco.

 

DOC FUMEX

Se olharmos bem numa mesa lá tão no canto que mais parece haver entrado no papel parede, veja, veja, são Dyonélio Machado e Augusto Meyer, trocam ideias sobre ratos e sombras, cada um convencido de que dentro do espelho um queijo refletido abriga uma constelação de imagens e o rótulo meio rasgado confirma: Via Láctea. Era Via Láctea o melhor vinho do Bar Murtinho. Afirma o dono do bar que o nome foi dado por Fernandão, e o Almada desenhou o rótulo.

 

FLOYD NIX

A Via Láctea continua espirrando das tetas de… plek-plek-plek!… talvez das tetas de Thétis.

 

DOC FUMEX

E as tetas de Téthis, garbosas, confirmam: O leite que nos alimenta em Roma não é o mesmo que nos alimenta em Búzios. Assim como a cascata de luz que vem do sul não é a mesma que escondemos do norte. Mas o leite das tetas de Thétis é monopólio do Almirante Basco da Gamba, chefe do maior clube de futebol do Brasil.

 

FLOYD NIX

As tetas de Thétis são o prêmio do Vasco da Gama. Por isso ela só dá para ele no templinho da Ilha dos Amores… onde se encontra o mapa-múndi, com o Meridiano das Tordesilhas marcado em linha vermelha. Ela só dá no Canto Nono, porque o Décimo é pra Apoteose d’Os Lusíadas e torna a entrar a Procissão, desfilando em torno da Torre de Belém.

 

DOC FUMEX

A Torre tombada é a que melhor se põe de pé, e reza ali em seu labirinto que melhor seria se o nosso Tratado fosse o de Versailles. Como não é, vamos mastigando miçangas, vesgos. O que não deixa de ser uma injustiça ao Tratado das Tordesilhas, criado pelo santo Papa Borgia, que possibilitou justamente a existência do Brasil. Não fosse o Papa Bórgia, e o Brasil hoje estaria reduzido à Ilha das Flores, e seus habitantes, um bando de magarefes ladrões e safados vagabundos.

 

FLOYD NIX

Melhor ainda é a Torre da Melusina, donde aos sábados… crescia-lhe então um rabão escamado e asas de morcego… e ela saía voando nas trevas da noite…

 

DOC FUMEX

Melusina foi pescar lambaris no aquário de Mr. Crowley. Foi e não mais voltou. Tampouco do aquário se sabe o paradeiro. Nas noites reviradas se ouve apenas a risada lancinante de Aleister, satânico. Certamente Aleister tinha seu talento de taroqueiro e comedor de peruas.

 

FLOYD NIX

O Crowley tinha uma piranha em seu aquário e uma flor carnívora no seu pote galé (ninguém sabe qual das duas lhe devorou um polegar).

 

DOC FUMEX

A piranha cravejada de brilhante pariu mil espigas de uma fábula à prestação. A flor carnívora disfarçada de mirante aguardava que cada vítima a ela viesse. Mas, naturalmente, a realidade jamais supera a ficção. Só chegavam à flor umas míseras moscas… Nem sequer jamais. sequer uma azul varejeira…

 

FLOYD NIX

Pesque caranguejo com o dedão do pé. Mas para a piranha, invente outro processo.

 

DOC FUMEX

A piranha, incestuosa, considerava parentes todas as vítimas de seu voraz apetite. Em seu camarim mantinha um pequeno baú amontoado de suvenires de seus pastos.

 

FLOYD NIX

Será o Boto, sempre galante, a sua próxima vítima?…

 

DOC FUMEX

Deixa que eu boto, disse a bota, em tom sapeca, defendendo que tudo não era senão figura de linguagem. É fácil reciclar as impurezas quando aqueles que entalham na pedra as regras são os únicos que podem infringi-las.

 

FLOYD NIX

A bota está muito presumida porque ela é para a perna que está faltando ao Capitão pirata unijambista.

 

DOC FUMEX

Não deixemos faltar mais nada, do contrário os rapazes virão morder a isca dos demônios maiores.

 

O prutuca do bar achou por bem bater a porta na coronha da conversa. Passem daqui pros infernos, seus catadores de fuligem. Chispem. Aluguem outra carroça para levá-los ao Morro do Farnel. E não voltem tão cedo, pois sim.

 

4. TÁBUA LASCADA

 

Onde andará Cassandra?

À porta bate o céu, seu menestrel,

venha depressa dizer o que foi

feito de nossa deusa inconsútil.

ANÔNIMO DA SILVA

 

DOC FUMEX

Primeiro o Polo Norte se derrete. Depois os rios secam… Depois então… o mar vira sertão.

 

FLOYD NIX

Caule de mandacaru na panela destampada, água fervendo olhando para o céu, mirando o reflexo da estiagem. Caso fosse cinema, viriam logo os jagunços carregando avoantes e quadris de jumentos para a Grande Festança da Seca…

 

DOC FUMEX

Também na realidade os jagunços voltarão, pelos Sertões, de picinez, medalhas e magníficos chapéus de Napoleão, vindo à frente Lampião e sua Joseca Fina de pulseiras nas canelas galopando a jegue e jumento em triângulos de Euclides, até a Colossal Pyrâmide de Brasília, onde Faraó Fó defende a Constituição gravada em hieroglyfos na Pedra da Esmeralda.

 

FLOYD NIX

Joseca tem sido a grande inspiradora do cinema nacional, que esbanja jagunços por todas as peneiras, como prova de que a vida imita a arte. Em Estornolândia cientistas de vários países estão desenvolvendo técnica de fusão de patas mesclando jumentos e jegues, empenhados em que em uma cavalgada com oito patas por equino se chega mais ligeiro ao Polo Norte. Chegando ali, o escopo será implantar imensos blocos de queijo suíço…

 

DOC FUMEX

Troppo Tarde… Não chegarão mais a tempo. Com o desaparecimento do Polo Norte todos os interesses das Grandes Potências se concentrarão no Polo Sul. Argentina, Chile, Uruguai e, por certo, Brasil passarão a ser paparicados pela Rússia, França, Prússia, Memérica, China… e até o Japão vai querer meter sua colherzinha.

 

FLOYD NIX

Colherzinha de olhares afunilados. Agora que o plano minou água de outra fonte, o que fazer com o estoque de queijo furadinho importado no mercado negro escandinavo?

 

DOC FUMEX

Se o estoque de queijo furadinho estiver mesmo podre, podem oferecê-lo como efetivo preparado camungongocida.

 

FLOYD NIX

A torcida canina acende velas em becos sem saída à entrada da Gatolândia ganindo de felicidade só de pensar nos miaus de patas para cima se debatendo até a chegada de nova encarnação. Resta, no entanto, a dúvida: entre mortos e sádicos, quem irá repor a agulha desfalcada na Bússola dos Horizontes Estreitos?

 

Boa lembrança, a do reitor, ao desafiar a trupe: ELOGIOS DE CASSANDRA. A começar por dois garis que moveriam de um lugar para outro a pedreira da moral. Sofregamente deslocam pedra a pedra cada um dos ícones de nosso bel-canto. Dois garis, Gardel e a trupe, começam a mover de um lado para outro a tranqueira.

 

FLOYD NIX

E por que chamas essa tranqueira de pedreira da moral? Tratam-se de apetrechos da vidente que foi presa pela polícia. A pobrecita foi levada à força, nem teve tempo de guardar nada, sequer sua poderosa bola de cristal…

 

DOC FUMEX

Que importa o nome… A forca espera pelos amantes da discórdia, quaisquer que sejam os papéis que esses sonsos infiéis representem. Dói-me nas costas ficar a levar de um canto a outro o falso júbilo dessa hierarquia de pedras.

 

FLOYD NIX

Deves imaginar, Colega, que estas pedras são esponjas, levíssimas… Usa a Imaginação, e hás de transformar a dura Realidade em fofa Fantasia… As asas da Realidade são de pedra… Mas as asas da Fantasia são de colossal Condor Imperial dos Andes, esse Gigante do Anil, que zomba das tempestades e sobrevoa a majestosa Cordilheira!…

 

DOC FUMEX

Eu já lhe havia dito que os arcanjos gargalham ao bimbalhar das tragédias suadas. Mas temos outra fantasia em concorrência, aquela que me faz tropeçar em sua cabeça oca, a mesma com que ele se recusa a me desvirar. Também a Realidade tem uma função a cumprir, Carneirinho, carneirão, pedra dura, pedra fofa.

 

A trupe vai se chegando, com cadeiras e painéis, prateleiras e cordas, penduricalhos e uma mesa de madeira única, e um carrinho de boa mão, ouve-se do anão que nova tranqueira se anuncia.

 

FLOYD NIX

Ora, quem sou eu, um simples gari de pontes e calçadas… Olhai pra cima, olhai pro chão, pro chão pro chão… Em minha ação de limpeza da rua de Cassandra Flores, dou graças por tudo que ela fez por mim, sete vezes mais do que nunca podido houvera imaginar, das maravilhas que me revelou para assombrar-me, com sua maravilhosa bola, para manter-me à altura da opulência que se apresenta em seus cristalinos reflexos…Nesta rua, nesta rua mora um anjo…

 

DOC FUMEX

Agora o diabo quer secar o pistão de lágrimas de nosso lagamar florido. Primeiro a notícia de que a bola desvirou reclame, todo mundo se esqueceu, ninguém soletra na carne os requebros da alma, as leis do umbigo espancaram o improviso, ninguém sabe mais apenas ser, o que for, agora toda a gente quer proteção de fraseados.

 

As cadeiras vão amontoando o livre arbítrio, acentos multicores, encostos derreados, um lencinho com fios dourados identificam o nome de cada escolha e suas consequências.

 

FLOYD NIX

Bola reverberante, que Circe por sua ávida redondeza teria clamado, pelo menos, oh, Bola!, Não te afastes de mim!… Com ávidas chuteiras, nem pra vitória de meu time Arranca-Toco, eu jamais, jamais, jamais te chutaria!…

 

DOC FUMEX

Os monges empalhados aturam a alma burlesca do taxidermista da roça. As manhãs chegam primeiro, a bola ainda dormida no alpendre da fazenda. Como vamos enfiar tudo isto, diz lá, Nix, em palco tão mixuruca sob um toldo esburacado?

 

Muito tempo depois é que se encontrou em meios aos escombros do teatro imaginário um par de tabuletas em cujos rabiscos ainda se podia vislumbrar a possível verdade da memória.

 

DOC FUMEX

Lyceo Pytanga avisa que o Reitor ztará viajando por uns dias de Zeplin… Quando regressar, responderá aos teletros recebidos.

 

FLOYD NIX

Bem vinda a viagem que nos leva de um galo a outro da alegria.

 

DOC FUMEX

Sempre bordejando o Meridiano das Tordesilhas…

 

FLOYD NIX

O Meridiano casou-se com a Diana do Meio. Ela o ensinou a caçar tordesilhas para o lanche.

 

DOC FUMEX

Bem aventurado Meridiano, ora se refestelando com a Diana do Meio… O Papa Bórgia fez-lhe o casamento em suntuosa cerimônia na Catedral de Madrid.

 

FLOYD NIX

Madrid e Padrid compareceram à festança panteísta. Nuvens de algodão temperaram o céu por todos os poros do casório filtrado.

 

DOC FUMEX

O Conde resfolega no cangote da Condessa, Mocinha de Abanos se encrespa atrás da coluna, risos elétricos percorrem o ar seco de Orgaz. Quando as palavras se completam o mundo renasce.

 

FLOYD NIX

Enterre a mão na fonte dos desejos. Cumule fugas nas dobras da clarineta. Venere o fole que entoca ar no pulmão. Não deixe nunca a dor para depois.

 

DOC FUMEX

O dilema da esperança, seja boa ou ruim, é que ela amofina de corpo & alma o crente em suas soluções miraculosas. Melhor esquecer o miado e tratar de dar aos gatos lição de bel-canto caso voltem as chanchadas.

 

FLOYD NIX

Balas de cá-te-espero no organdi malemolente das dançarinas da corte. Sustentam o mundo em seus requebros e o corte transversal em suas anáguas.

 

DOC FUMEX

Um instante de silêncio, palco e plateia se entreolham – existirá mesmo uma Cassandra? –, a cortina ergue a cabeça desconfiada, dando pela falta de algo no roteiro ou querendo nova sessão.

 

O mapa da mina despencou em meio a uma sinfonia de cacarecos e as sílabas gastas faziam um estrondo tremendo, como se contasse outra história, da qual não se pudesse entender nada.

 

5. UNHAS DE CLOTINHA

 

As unhas de Maltilde Clotinha já nascem roídas.

ANASTÁCIO CALOTE

 

DOC FUMEX

Nem tanto… é que antes que apareçam… e já as roeu o rato … Mais a mais… Clotinha de busto altivo em par com Tio Meroles na entrada da majestosa Gare Ferroviária Labyrintho… mais que das unhas… precisa das tetinhas meio encobertas pelo decote distraído.

 

FLOYD NIX

As coberturas vazam entrando as noites mal saídas da galeria e Clotinha rói o rato em represália a seus abusos. A impertinência no olhar do famélico roedor distrai os seios que não param de crescer, buscando afago por todo o volume de suas ânsias montanhosas.

 

DOC FUMEX

Para os afagos… caberia ao Meroles se decidir… mas ele demorou muito… devo ou não devo… posso ou não posso… O tempo passou, e os dois se atrasaram. A vida é um trem apressado… na estação esteja de malas a postos… na beira do cais. Não há tempo pra ler a placa da direção. Pule dentro do trem. Depois então…

 

FLOYD NIX

…depois então a direção encontra seus passageiros. E no vagão-bar expõe os bustos robustos daqueles que perderam o trem. Meroles cavou um poço na toalha da mesa do canto. Saltavam dali as paisagens que ele ia colando uma a uma por todas as janelas em movimento. Na medida em que a viagem se declarava bem alimentada Clotinha exibia as unhas refeitas por um instante.

 

DOC FUMEX

O trem era um luxo só… tinha rodas pneu-balão… banda branca… e uma música difusa corria pelos vagões… Elvis Presley?… Parece que sim… mas o chapéu cowboy cobria-lhe o rosto…

 

FLOYD NIX

As máscaras sempre se ocupam dos santos, menosprezando o milagre. Um pedregulho no trilho fez o trem dar um salto súbito e por uma das janelas entrou rasgando um facho de luz crepuscular. Clotinha foi logo gritando: Cuidado ao cruzar o semáforo que me vão borrar as unhas. O barman, que não tirava os olhos dum cantinho rendado de seu decote, deu dois passos para trás, como costumam fazer os acólitos, e desfizeram-se os laços de sedução da cena.

 

DOC FUMEX

Aproxima-se meio cambaleante ao sacolejo do trem, Elvys Presley, sempre com o chapelão acobertando parcialmente o rosto.

 

DÓRIS NIGHT

Diga-me, forasteiro, és mesmo o Elvis?...

 

ELVYS

Sim, Boneca, justamente porque duvidas… sou o Elvis. Sempre guardo um pouco de mystério, pra fascinar minhas fãs.

 

FLOYD NIX

Novo sacolejo e Elvis retira da capa uma viola branquinha:

 

ELVYS CAPOTÃO

Sentimental eu sou, eu sou demais… Um dia ainda concluo essa versão.

 

DÓRIS NIGHT

Ai meus sais, que voz, mesmo morto ele é tão lindo…! Imagina ressuscitando em minha cabina…

 

FISCAL-MOR (Entra, preocupado)

Olá, Dona Dóris, perdoe-me a interrupção, mas como vedes por meu uniforme com três estrelas, sou o fiscal-mor da fiel equipe de funcionários de nosso fulminante trem Paralax. Desejaria participar-lhe, Dona Dóris, vós que sois uma cantora dramática extraordinária, de quem desejaria, mas não ouso pedir, vosso retrato paramentado com autógrafo… que temos a bordo um pseudo-Elvis vil caçador de peruas distraídas…

 

DÓRIS NIGHT

Ah logo vi que o roteirista tinha exagerado no tempero de minha moqueca… O barman também me disse, enquanto me espremia num cantinho ventilado entre vagões, que se tratava de Elvys Capotão, um salafra que leva na lábia as mulheres avulsas que cruzam o mundo no Paralax.

 

FLOYD NIX

Paralax é o nosso transglobal, dele não há palmo de terra que escape. Clotinha faceira debruçada no recorte de uma janela soprava as unhas recém-roídas e se deixava beijar na face posterior de suas coxas pelo anão Fraseado Solto, que entre uma beijoca e outra deixava escapar o mantra: dura lex, sed lex

 

FISCAL-MOR

Preciso manter o clima romântico do Paralax, pra que não caia numa pornochanchada dum trem treme trêmulo qualquer… Minha missão romântica agudinha vai se tornando cada dia mais difícil com a vulgar licenciosidade grosseirona de nossos dias… Queremos um ambiente em tecnicolor original de cinema panorâmico dos anos cinquenta, do século passado… com Clark Garbo, Verônika Lago, e a colossal banda de jazz de Bill Summer… Todos de smoking e uma bateria de dez saxofonistas…

 

DÉCIO CUBATA (o barman)

Vou preparar meu ponche de groselha com saquê e folhinhas de malvarisco na borda das taças, que deixa o coração acelerado e a garganta prontinha para as falésias guturais de um longo trajeto de canto e luxúria.

 

FLOYD NIX

Não te esqueças dos canapés com pimenta doce que Clotinha adora ofertar na catedral de seus acidentes anatômicos.

 

FRASEADO SOLTO

Numa noite a mil a eternidade eu desfio.

 

DOC FUMEX

Parece que o romantismo liberô do novo Milênio vai muito além do novecentismo do Fiscal-Mor… que se deixou ficar no café duma longínqua estação… E o Expresso Paralax segue sua viagem pelas novas Galáxias…

 

FLOYD NIX

Pois é justamente aí que reside a passagem do tempo em meio a seu eterno dilema de querer ocupar dois espaços simultaneamente. O anão debulhava seus axiomas que aos poucos iam irritando a todos na folia mecânica do Paralax. Numa dessas noites abocanhadas pelo acaso, numa série de curvas que se repetiam como uma elipse, Padre Anselmo olhou para o céu e vislumbrou um palito de luz. Elvys Capotão e Verônika Lago ensaiavam uma marcha-rancho em meio a uma breve melancolia que se instalava no vagão. O que seria tal luz? Anselmo apontou para o alto e os olhares todos o seguiram. O azul-prata brilhante parecia mergulhar nos olhos de cada um. E logo a luz era a única paisagem possível, nela sumindo o próprio vagão. Clotinha foi a primeira a identificar os ruídos fortuitos e o vazio silencioso e avassalador que os devoravam.

 

CLOTINHA

Afinal, aonde diabos nós viemos parar? Décio, parecemos firmes no chão, mas não há chão. Tudo é vazio, porém não estamos flutuando. Podemos andar, mesmo não havendo piso. Minha gente, o que está se passando conosco?

 

DÉCIO
Creio, Clotinha, que este mistério transcedental só Doc Fumex, com seu cachimbo e encyclopédica erudição, nos poderá elucidar… Diga-lá, Doc Fumex.

 
DOC FUMEX

Deixa rolar o Paralax… Lex Dura Lex, pro meu cabelo só Gumex.

 

FLOYD NIX

Ai, meu caro Fumex, eu vejo agora que no sacolejo em que se embaralharam tempo e espaço algo se perdeu… Fritz Banzo já dizia que nessa vida não há ninguém que não se perca, um cadinho que seja. Talvez a vida seja o sumo dos fragmentos desencontrados ou esbagaçados no balanço das viradas. Se Clotinha não roesse tanto as unhas já teria percebido que fomos abduzidos para um tubão de tudo-nada. Agora somos essencialmente as partes que faltam. Cenário assim tão de todo nu… sem chão ou teto… sem paredes… parece ser a grande solução para o Theatro Automático, ao reduzir a quase zero os cifrões da produção.

 

6. DRAMA DO NÃO-ESPAÇO

 

Volta e meia o cacimbão regurgita deuses.

KLEP MUNIZ

 

FLOYD NIX

Se houve um dia Paralax já não o sabemos. As incertezas constituem o núcleo melhor sedimentado da história. A descoberta do não-espaço propiciou redimensionar antigos enredos, dando à criação um novo motivo para seus delírios e folguedos. Estrada infinita pela frente, qualquer que seja a direção, qualquer o ângulo. Assim como sapos saltando da cartola escangotada do Mago Cremix, do mais pleno vazio saltam cenas e personagens… Experimente sacar algum enredo, Fumex.

 

DOC FUMEX

Quem sou eu?… Um novecentista romântico, ante essas mirambolâncias eletrônicas do 21… E quem descobriu o não-espaço? O Mago Cremix? É tão só um farsante mago de mafuá… O não-espaço certamente está dentro de sua cartola, tão repleta de ratos, coelhos e bagulhos, que não sobrou espaço para mais nada…

 

FLOYD NIX

O não-espaço é o cenário do intangível, o escoamento da forma, nele apenas o fraseado se põe de pé e mesmo assim apenas no instante em que se fala. É bom para viajar, porque não requer sair de onde se está, até porque no não-espaço caem por terra os conceitos de ser e estar. Dizem que o Mago Cremix encontrou uns papelotes no fundo falso da cartola de outro ilusionista, André Brejeiro, com quem chegou a dividir banco de tenda no Pavilhão das Liberdades Frustradas.

 

DOC FUMEX

O não-espaço me assusta!… Ztou roendo as zuuuuunhas… Ainda bem que o Vesúvio não está no bairro… Ou se tivéssemos um Titicaca… um Aconcágua, ou um Ximborazo, um Popocatepel… Uma morte no fogo!… Cruel, mas humana… Ao passo que esse Não-Espaço é coisa de morto-vivo… de Allan Kardume!…

 

FLOYD NIX

Ora, Fumex, ninguém rói melhor as unhas do que a Clotinha, e ela está aqui conosco justamente para ensinar aos povos de outras dimensões essa prática que, em todo o Universo, é domínio apenas dos terráqueos. Até mesmo no reino animal somente os homens roem as unhas. Nem mesmo os tamanduás ou os demônios da Tasmânia. Todos nós estamos aqui para cumprir tal missão. Como fazê-lo? Através das artes dramáticas…

 

CATÃO BALUARTE

Tlém, tlém, tlém… Toco o meu badalo imaginário e convoco a todos para o centro do não-palco! Venham, venham, hora de começar a soletrar os primeiros improvisos…

 

DOC FUMEX

Tragam taças de porcelana da Bélgica, copos de cristal da Bohêmia, uma chaleira com Café Fonema, uma ânfora de vinho Falerno e bananas pra Macaca Pinola… A Poesia é a filha maluca de Dona Razão. Dai-vos pressa, oh Filhos da Arte!… A chaleira já está chiando um fado de Maria Tamanco, duma tristeza de rachar.

 

FLOYD NIX

Dai-vos pressa, ecoa Catão BaluArte!… E introduz em cena Madame Putinheska que acentua nossas mazelas físicas e, frenética, descortina que aqueles que caminham como se de algo fugissem serão descarnados como uma matéria putrefata. Ela fareja o vazio e defende que somente a libertinagem cria.

 

FRASEADO SOLTO

Se um castelo se isola do mundo no alto derreado de um penhasco, por mais que grasne jamais será seguido sequer pelo fogo. Também os amores que se mantém isolados em suas camas de cristal não expressarão jamais a grande fome de viver.

 

MADAME PUTINHESKA

As leis da física enterram o homem vivo. É preciso criar um salto de imaginação. Por isto saio das páginas de Prepúcio Boreal e venho me misturar com todos de modo arrebatado e assim mesmo nuazinha como vim ao mundo.

 

NELSON ROMILDES (jornalista)

A plateia, face ao discurso passional de Madame Putinheska, se divide entre a Esquerda Libertária e a Direita Ultrajada. E Doc Fumex, em que bloco se coloca? Não o encontramos!… Onde andará o Fumex? Lá está, enrolado na cortina, para não se comprometer. Ora, Fumex, não vou achacá-lo, exigindo que tome posição nesta tediosa pendenga… Somos colegas da imprensa… Gostaríamos apenas que nos passasse algumas fofocas ilibadas, mas objetivas, sobre alguns personagens. Quem é, afinal, essa perua louca ninfomaníaca, que quer comer todo mundo no sarau?…

 

DOC FUMEX

Pois é… Marinela foi educada no Sacré Coeur, onde lhe completaram os bons ensinamentos para a cultura e o espírito. Tinha invejável tino literário, apreciando as obras de Marquês de Sade e do Conde de Lautréamont. Quando sua mãe lhe perguntou qual presentinho ansiava para os seus quinze anos, ela, de olhos baixos, pediu-lhe um chicotinho… de pelica, pequenino, mas de três braços, com preguinho na ponta. Seria pra servir-lhe de cilício.

 

NELSON ROMILDES

Estou anotando tudo de memória, mas me surge uma dúvida. Acaso ela não é o anjo aterrador do romance de Prepúcio Boreal? Lembro bem umas páginas em que se dizia que o império estava feito por rufiões e mercadores, e que os dois se confundiam em uma mesma cafajestice…

 

FLOYD NIX

É possível, porque houve um momento em que a humanidade se viciou em aforismos e os apelidos eram uma lambança metafísica a surrupiar as identidades… Boreal era um reflexo dessa travessura humilhante.

 

MADAME PUTINHESKA

Ah esses pobres moços machucados pelo passado! Tragam para mim seus cabos de guerra, nós precisamos refundar o horizonte. Os acidentes dão à vida um relicário menos servil. Venham, meninos, Mamá espera a todos no abominável teatro de minhas coxas ensopadas…

 

DOC FUMEX (de pé no peitoril da janela)

Prezado Floyd, está na hora de meu embarque… O táxi lá embaixo já me está esperando. Pulo agora da janela, deste quinto andar, utilizando o meu magnífico guarda-chuvas inventado pelo Leopardo Davint, extraordinário inventor de asas mecânicas e paraquedas. Divirtam-se! Zaaaftttt!…

 

NELSON ROMILDES

Doc Fumegas pulou presto, bem sei por quê. Olhem para o público!… Cavalheiros e Damas dos camarotes, e os velhotes e damas de boininha da galeria intelectual, numa revolta vociferante se transformaram na Tromba Humana!… É uma espécie de versão terrestre da Tromba d’Água dos Lusíadas!... Vai crescendo em espirais e vem se aproximando de nosso palco!… Passei por perigo parecido no lançamento de minha peça Tanguinha de Núpcias

 

MADAME PUTINHESKA

Esse chupa-brumas é um menino levado. Em minhas mãos eu lhe daria remendo…

 

FLOYD NIX

O público sempre foi a velha ferida na alma de Doc Fumex. Cheguei a pensar que em um Teatro do Nada, em pleno não-espaço, pela impossibilidade de existir público, ele recauchutasse seus velhos traumas. Mas ele inventa um público ulterior que acaba por castrar sua imaginação. Acho até que foi péssima a ideia de abdução. O homem ainda não está pronto para descobrir seu duplo em outra galáxia.

 

FRASEADO SOLTO

O sovina come requentado. O mascarado leva uma vida de bailes. A poça d’água é o espelho da imensidão…

 

MADAME PUTINHESKA

Alguém desligue essa coisa!

 

CATÃO BALUARTE

Tlém, tlém, tlém… Finis terrae

 

7. ANTES QUE HOUVESSE TEMPO DE MENTIR

 

Um dia puseram as cortinas para lavar. Falas e cenários, que por vezes até se atropelavam, em face da barafunda de improvisos, não deram por conta das poltronas na plateia que, embora vazias, não desgrudavam o olhar dos argumentos, sobretudo quando os mesmos fugiam do contexto.

 

FLOYD NIX

Olha, acho que eu deveria dedicar este livro à Bruxa Rosana, graças a ela fui sempre muito bem recebido em todos os ciclos do Inferno.

 

DOC FUMEX

Seria muito merecido. A Rosana faz tudo o que lhe peças. Ela é pra ti tal qual a Sibila de Cumes pro… Enéias.

 

FLOYD NIX

Além do que criará uma aura de mistério, imagina, logo no frontispício: Dedico este livro à Bruxa Rosana… Amanhã ponho em ordem o material que recebi hoje, da pena de Aderbal Quaresma, outro expurgado pelo Faraó das Três Limas.

 

DOC FUMEX

Além do mistério pra ouriçar a plateia… Rosana agradecida vai aprontar pro livro um feitiço!! Fará um feroz furor no guichê de Leonor.

 

FLOYD NIX

Um furor para Leonor Fini, onde nada se finda, onde tudo começa ou recomeça. O recomeço, por sinal, é uma pérola da retórica, pois tudo é sempre começo. Chamarei os carpinteiros canastrões do reino para que ampliem o balcão.

 

DOC FUMEX

Leonor Fini vale um apertão no guichê!… A multidão aumenta cada vez mais.

 

FLOYD NIX

Em casos assim sempre aparece alguém do Comitê Central a trazer à tona a velha discussão de quem veio primeiro: o guichê ou a multidão. O mundo e seu remake.

 

DOC FUMEX

O problema é que a multidão sempre vai para o teatro errado… Em vez de vir para o nosso, com Leonor Fini no guichê, vão todos ao Cine Metrox, ver o Ben Hur… ou ao Cine Fox, ver o Victor Mature… de Sansão.

 

FLOYD NIX

Por isto que o remake é a Grande Obra. Base dos best-sellers, receita infalível da Sétima Arte. Nada se cria. Tudo se reproduz, com pequenos retoques, em nome de uma vanguarda cristalizada.

 

DOC FUMEX

Por isso mesmo acho que nosso único recurso é fazer uma paródia de besticela… fingindo que é mesmô… besticela… O povão comprará milhõõõõõessss d’exemplares!!!… No Aeroporto de Orly, quando descobrirem nossa fraude, haverá uma revolta popular, a multidão enfurecida cercará o prédio da editora e… tacará fooooogo!!! Morrerá de vítima o inocente samaritano, o pobre Salim abraçado a suas panelas no Bazar Baltazar.

 

FLOYD NIX

O povão já se acostumou tanto a aplaudir o dobrado de pistões falsos que vez que outra quando a música acerta o passo sempre se escuta o ribombo de um tomate podre na caixa de retorno. Alguém na plateia sempre se mantém o mais atento a todas as correções eventuais do que é falso notório. Não importa se os cravos nas mãos do Nazareno ou se o pouso fajuto da Nasa na lua. Ninguém ouse corrigir os falsetes da história.

 

DOC FUMEX

Se jamais os astronautas conseguirem pousar na Lua e voltar… Será que vão confessar que aquele mal encenado primeiro pouso foi… Balão de ensaio?… JAMAIS!!! JAMAIS CONFESSARÃO!!! E a Opinião Pública JAMAIS ousará pôr em questão este DOGMA da Civilização Contemporânea…

 

FLOYD NIX

Nem este nem aquele do gatuno sementeiro a quem primeiro a Tereza deu a mão, não importa o quanto a estrada estivesse repleta de laranja tão madura. A história ama o soslaio e a vela manufaturada nos fundos da quitanda de Sor Inês. O resto da festa sempre a garantem os copistas de Caravaggio e Chico da Silva. Amém.

 

DOC FUMEX

As garras de Floyd Nix cada vez mais afiadas… como diria o Padre Jardim: Assim, meu filho, ninguém escapa…

 

FLOYD NIX

Padre Jardim ainda guarda às vistas de todos, pendurada em seu pescoço, a chave do maior de todos os mistérios: o cristal que nos faz ver tão longe quanto perto, tão íntimo como ausente. E a quem lhe indague as razões de tamanha ousadia, ele reafirma que o oculto por excelência é o que vemos a cada instante em qualquer parte.

 

DOC FUMEX

Padre Jardim está avançadíssimo… Deve ter lido a Pedra da Esmeralda.

 

FLOYD NIX

Em plena cumplicidade com o Acaso ele descobriu que cada pedra luminosa ao ser refletida no calcário e, dado incerto ângulo, reproduz a estrutura íntima de outra pedra igualmente luminosa, e foi assim que compreendeu que todos os reinos são um só, bem como os deuses.

 

DOC FUMEX

O acaso da intenção? ou… a intenção do acaso?

 

FLOYD NIX

A intenção é o pior de todos os acasos, assim como o acaso é a mais destemperada de todas as intenções. De que lado por a asa da xícara antes que o voo embriague?

 

DOC FUMEX

O voo só te poderá embriagar quando a xícara tiver duas asas.

 

FLOYD NIX

Um artista português, após muito refletir, resolveu por a asa no lado interno da xícara. Assim o voo se daria de outro modo, por efeito de infusão. Não sem antes o sermão.

 

DOC FUMEX

O artista português inventou, assim, o disco voador.

 

FLOYD NIX

E tão rasante foi o voo experimental que voltou a ser xícara, desta vez desossada.

 

DOC FUMEX

Bota-lhe uns pelos da Meret, que ela vai gostar… Toda xícara é mulher, e toda mulher gosta de ser gostosa… Sorve-lhe um café nos pentelhos que ela vai gostar. Ai ai ai, agora… querer ser poeta num mundo em que despreza ou ignora a poesia é uma insensatez. Melhor a música, o romance, a tevê, o cinema. Ninguém, dotado de bom senso, JAMAIS escolherá ser poeta… Então… porque e para que vamos nós ficar de semente?… E não somos burros… Mas porque cismamos de ser poetas? E… in-sis-ti-mos? Acho, Nix, que a única explicação é que foi a Poesia quem nos escolheu, e não nós a ela. Somos os mosquitos… e a poesia… é a nossa Aranha… que nos fascina, e nos vai devorando… pedacinho por pedacinho… E nós… gostamos… O-Ro-Ro-Rooooo

 

FLOYD NIX

A ferida faz de tudo para não estancar. A fístula do bem viver. O cadáver delicioso atado ao pé do abismo. O inferno pajeando a melancolia e outros destemperos do ser. Quem cria sabe que afia a própria lâmina que um dia lhe dará o golpe fatal. No entanto o verbo flerta com todas as flexões do destino. Acho que pregamos tantas coisas no céu com a clara intenção de impedir o voo. Nuvens e antenas, estrelas e arranha-céus. Quase não sobra espaço para um rasante bem dado. Troquei as crinas do alazão pelos pentelhos da Meret, agora meu cavaquinho não desafina mais não.

 

DOC FUMEX

Aproveite enquanto possa antes que chegue a carroça. Agora então com o Feliz Final cai a cortina: BOM REBELHÃO. BONG PLOFT BANG!!!

 

Mas não havia cortina alguma, era apenas o efeito fantasma do membro extirpado. As cortinas ainda não haviam retornado da lavanderia. No entanto a plateia, igualmente inexistente aplaudiu de pé o encontro entre os dois corifeus que tão bem maturaram, de manga solta, sobre as inúmeras traquinagens pueris e até mesmo sádicas de nosso tempo.

 

8. QUIMERA É ESSA?

 

FLOYD NIX

A mais farisaica de todas as quimeras se chama Inocência. A mais tormentosa de todas as incongruências místicas. O Chapelão da Corte, que passa a vassoura nos pecados da terra, jamais aprendeu a lidar com a heterogênea Inocência. Há poucos dias uma híbrida Lolita veio morar comigo. Resfolego sem saber a que duras penas me submete a implacável imponderabilidade da existência. Dá-me uma lanterna, Doc…

 

DOC FUMEX

Passo-te uma lanterna semiapagada… (canto:) – E tudo a media luz… trali-trali-tatá… o pecado passa de contrabando na mochila do camelo.

 

FLOYD NIX

Passa o rebanho das pilhas gastas, para que os temas que assolam o presente se mantenham sempre carentes da presumível clareza que exigem. Um pouco de tudo ao passo de mil saguis que tamborilam na pele da surdina. Mas o que se pode fazer com a Inocência afastada dos espelhos?

 

DOC FUMEX

Todos os espelhos da casa de Tio Carol estão encobertos por espessas cortinas, para que Lilica não os atravesse, e a Maioria Silenciosa não veja a própria cara de basbaque. O Polo Norte se derrete, mas no Polo Sul os Pinguins Imperiais seguem de fraque em solene Congresso.

 

FLOYD NIX

Congressistas debatem aos berros sobre a teoria dos exílios fiscais, cada um com uma mão no bolso, certamente segurando o botão de controle da próxima bomba ecumênica. Lilica vive com as unhas a namorar as paredes buscando uma imagem perdida.

 

DOC FUMEX

Talvez seja a imagem do Coelho Branco. Ele era o xodó da Rainha Ruiva… Xodó tocava a cornetinha pra cá, tocava a cornetinha pra lá, desenrolava um pergaminho, e recitava o cardápio de bolos do dia, no chá da rainha… Cada bolo do chá simbolizava um bolo político no logro da população…

 

FLOYD NIX

…até que um bolo no estômago fez as ideias saírem por uma tubulação indesejável. Sem a linha labial que lhe indicasse a origem, ouve-se risada grotesca de quem se supõe seja o gato desbotado. De um modo ou de outro, o mundo se perde em trilhas abandonadas.

 

DOC FUMEX

Mas o sábio Ling Fó, acompanhado de seu fiel gato sem botas, em seu laboratório alchímico, por encomenda real, está descobrindo uma pastilha mágica, que transformará no estômago da comensal suas boas ideias em pipi de ouro!... As más ideias, porém, seguirão sendo mesmo de bosta.

 

FLOYD NIX

Não metam a mão em cumbucas vazadas. A vazante da seda resultou em rota que escorria para dentro, até a foz do pavio do circuito imperial. Uma modesta falange crescia no paralelo, pintando de lilás o lodo de suas células. Na Biblioteca das Sete Tábuas há um papiro que registra aí o nascedouro do terrorismo.

 

DOC FUMEX

Justamente na Biblioteca das Sete Tábuas, um fanático lascou a tábua nos cornos do Bibliotecário, e se tornou assim Ali Babu, o primeiro terrorista da História. O Bibliotecário Jorge Bagre teve um enterro concorridíssimo, centenas de milhares de manifestantes, com cartazes de protesto. O Juiz, severo, condenou Ali Babu. Como ainda tinha folha corrida, salvo pequenos assaltos, foi condenado a dois anos, de liberdade condicional, assistido por um psicólogo pra preparar sua reinserção social.

 

FLOYD NIX

Como uma catinga abafa outra, durante algum tempo não se falava em terrorismo, sendo a voz da vez um estrondo das falhas interpretativas da Lei da Camurça Tingida, pois a reinserção de Ali Babu foi o leite entornado sobre o óleo das ilusões refrescantes. Ao deixar o complexo das grades tratou de mudar de rosto e nome, passando a se chamar Leocádio Trancinha, vindo a comandar uma das falanges criminosas mais violentas.

 

DOC FUMEX

Leocádio Trancinha não sossega, nem se corrige. O Juiz Hades Roboaldo, porém, é duma dedicação inflexível no resgate dos desajustados sociais. Trancinha terá de se corrigir à força, porque Hades Roboaldo é um incansável iluminista defensor dos Direitos Humanos. Após seu oitavo assassinato, de que a vítima foi o Padre Procópio, as manifestações de protesto, contra a inanidade da Justiça, foram contrarrestadas pelas borrachadas suasórias, e o ácido Juiz condenou Trancinha ao exílio na ilha de Paquetá, aos cuidados do psicólogo Levi Damásio, que criou um sistema progressista de portas e janelas abertas… (e um baseado de maconha por dia, pro Trança)…

 

FLOYD NIX

As reticências da lei, exaltadas, até com os olhos dobravam os fuminhos bem plantados e colhidos. A jovem Inocência fazia cara de Volúpia, sua irmã mais despudorada. Levi Damásio defendia que os vegetais ainda foras da lei eram a tabula rasa das resoluções psíquicas. Tratamento com ele não podia deixar de lado a sessão fumacê e a boa regressão hipnótica. Se o penitente tem o mundo dentro de si não há motivo para querer sair de seu recolhimento. Famoso ficou seu livro: Ermos & Ervas – O lugar do homem no mundo. Leocádio Trancinha não tardou a rezar por sua cartilha, em especial porque Damásio lhe dava sempre, como prêmio, como sardinha na boca da foca amestrada, uma noite bem lavada e passada com uma das meninas que cuidavam do roçado.

 

DOC FUMEX

Assim, tudo como antes no governo de Doutor Abranches. Os jornais de amanhã já são distribuídos hoje, pelo jornaleiro Bocarra, que amanhã vai tirar o dia para pescar no Rio Pirajá, onde a maré entra quase até a nascente, de modo que neste rio podes pescar peixes fluviais e marinhos. Tanto que um tubarão, numa de suas pescarias, arrancou uma perna do Bocarra!… Felizmente era a perna-de-pau, e Doutor Abranches deu-lhe outra, em jacarandá, lavrada por Bernini.

 

FLOYD NIX

Este sempre foi o xeque-mate da imprensa: como inventar a diário um sem número de novidades, se o mundo progride por repetição? Bocarra dá risadas tremendas ao anunciar dia após dia uma nova edição. Dizem que certo dia a venda esgotou tão rapidamente que ele buscou em seus guardados umas edições anteriores e saiu a gritar: Extra! Extra!, vendendo tudo ligeirinho, sem que o leitor percebesse.

 

DOC FUMEX

Tendo sangue, porrada, pivete, carnaval, starlette de bumbum de fora, futebol, senador preso pela polícia no salão durante a sessão no Congresso, tudo bem, ninguém nota a diferença do jornal de hoje e o do mês passado. O único problema é que Bocarra sempre procura vender uma edição em que o Vasco venceu.

 

FLOYD NIX

Assim como a notícia caminha também o mundo, engessado de cima abaixo, e o grande regente dessa turnê será Praxedes, o taxidermista volante, que percorre a Corte dos Terçóis e o Magistério das Palafitas. Votemos nele para líder de banda, quem sabe assim a Inocência saia de vez de cena. Caro Doc, deixe a porta entreaberta ao sair, por favor.

 

DOC FUMEX

Muito bem, Floyd, deixo a porta entreaberta e desapareço. Ciao…

 

9. TUMBA LACRIMOSA

 

Um dia o inferno olhou para dentro de si e desabou em choro verborrágico.

TUPÃZINHO DE ALGIBEIRA

 

FLOYD NIX

Caro Fumex, li em uma daquelas páginas confinadas ao fundo de gaveta, que houve uma época em que se fez moda o método de forçar os enfermos da cuca a malharem em ferro frio. A seu lado era pregada em sofá uma orelha e criada a ilusão de que tudo o que ele depositasse em seu interior seria decisivo na faxina de sua pobre alma combalida. Trouxe comigo uma cópia do sofá orelhado, quem sabe assim livraríamos algumas botas do Inferno.

 

DOC FUMEX

O sofá, segundo a Encyclopédia Labrosse, tinha orelhas de burro, ouvia muito, mas entendia pouco, boca e dentes de cavalo, relinchava e comia o tapete, mas com pernas e pés de porco, não sabia galopar nem pular pela janela, pra fugir dos loucos. No soalho havia o bueiro de um profundo poço que dava direto para o Inferno, mas permanecia trancado a sete chaves. O Inferno estaria superlotado. Em todo caso, conforme diz Nelson Romildes na Rádio Lambada, Lugar de Louco é no Céu.

 

FLOYD NIX

E para lá iam hordas infladas, crentes que a parvoíce era prima-irmã da loucura. Muitos entravam pela orelha do burro e se perdiam no trajeto. De volta ao sofá nunca se soube de um caso. Porém em um papelote na 116ª edição da Labrosse, a título de fé de erratas, qualquer um podia ler que a ilusão em muitas páginas onde era citada não passava de um grau mais alto de entropia. A verdade, que sempre preferiu estar do lado de fora, jamais foi tão irreversível quanto se imaginou. Daí que o sofá orelhado durante décadas funcionou como um colete salva-vidas.

 

DOC FUMEX

A Verdade e a Justizza sempre estão do lado dos grandes batalhões. Por isso o Lening, indo pro Kremlin em sua limusine Rolls-Royce de seis rodas e cremalheiras, trazia sempre um ás de espadas forrado no boné, e… intitulou seu jornal de… A Verdade (Pravda). E… era mesmo… não convém discutir.

 

FLOYD NIX

Desde então a verdade oscila entre privação e depravação. A partir daí o mundo foi se ramificando em cárceres privados do desejo. A indústria da moda abana seu rabinho e as meninas percorrem as galerias da Ratoeira Central. Os meninos se entopem de loção barata e acendem a lamparina de seus pequenos vícios. Logo o sofá orelhado passa a ser vendido nas melhores casas do ramo a preço de ocasião.

 

DOC FUMEX

Aproveite, freguês, esta oferta im-per-dí-vel!!!… O sofá-de-orelhas vem com um alicate de médio alcance para quebrar galhos de quintal, que podem rasgar fantasias carnavalescas de… de… Had Hoc!… ou talvez de… Had Dad?… Eis a questão… a ver se bem me lembro… plec-plec-plec… estalo os dedos.

 

FLOYD NIX

Fato é que já não se sabe de que lado fica a realidade. Talvez o freguês mais astuto fosse aquele que comprasse dois sofás e os dispusesse em sua sala um de frente para o outro, enlaçados por tripas comunicantes, preparando fuminhos de vidas paralelas. Quem sabe assim, tendo de um lado Had Hoc e de outro Had Dad, a cozinha do inferno voltasse a bater suas panelas e uma multidão de grilos falantes saísse em passeata pelos guetos mais recentes da história.

 

DOC FUMEX

Justamente Manuel Fontana, famoso artista conceitual, comprou dois sofás-de-orelhas e colocou-os um diante do outro, bordejou-os de tubos neon, alguns mapas de Palermo, colocou uns tufos de algodão, garrafas e esparadrapos, e ganhou o Primeiro Prêmio da Bienal de Ravenna.

 

FLOYD NIX

No chão havia uma placa de metal que fazia menção às partículas entrelaçadas, sugerindo ao público que poderiam ser manipuladas com o olhar, assim os orelhudos acentos ganhariam vida e toda a cena se converteria em um ninho de preás do reino. Ascendino, o vigilante daquela parte da Bienal, anotava em mil papelotes tudo o que via, dos passantes às variações de humor dos sofás. Ao voltar para casa tentou montar o quebra-cabeça e dormiu com a cabeça sobre os joelhos na cópia bege de um daqueles sofás que havia comprado em uma venda de garagem. Ao acordar não se reconheceu diante do espelho.

 

DOC FUMEX

Aí está, Floyd!… A Missão Supina da Arte!… Transformar seus filhos em Homens Novos!… Abertos para a Cultura, a Sabedoria, a Democracia e os Direitos Humanos!!! Ascendino não se reconheceu no espelho, porque tinha ascendido ao estado de graça de… Artista!… Com sua instalação de papelotes, ora sonha em participar na próxima Bienal de Ravenna, o que anunciou ao Professore Podrecca, Diretore della Biennale, que o parabenizou. Quando Ascendino deixou seu gabinete, Professore Podrecca telefonou súbito para o asilo de alienados Castelo Nunkamaz, e falou com seu diretor, o filantropo visionário, Doktor Frankenstein, que, pelo conjunto de sua prática e seus tratados sociológicos, seriamente ameaça ganhar o Prêmio Nobélio!…

 

FLOYD NIX

Anarquino Trapiche foi o terceiro dos artistas premiados, com uma surpreendente cabina telefônica de puro látex, maleável a qualquer um que lhe adentrasse, de onde se ouvia, oriunda de pontos distintos e permutáveis, vozes distintas que repetiam Eu preciso falar, Eu prefiro falar, Eu consigo falar. O júri se confessou confuso ante o embaralhar de promessas e profecias, característica da Política e da Arte Conceitual. Do lado de fora da Bienal uma multidão empilhava sofás orelhudos de todas as cores, como prova de que a Arte deve ser feita por todos.

 

DOC FUMEX

Sim, a Arte deve ser feita por todos, a começar no aconchego do lar, os cônjuges devem fazer arte bilu-bilu, as crianças fazer arte infantil, o papagaio deve fazer arte oratória, a cozinheira arte culinária, a arrumadeira deve cantar sambas e marchinhas carnavalescas. E os bombeiros devem praticar acrobacias hidráulicas, para salvarem nossos museus e seus acervos multi-seculares dos repetidos incêndios, que se propagam de preferência aos domingos e feriados, devorando vorazmente a uma velocidade espantosa quadros e mobiliário, incentivados pela falta de material de prevenção, e talvez também falta d’água, e falta de catálogo telefônico, pra alguém encontrar o número de telefone do posto de bombeiros. Teme-se que a Primeira Missa do Brasil, flagrada por Vitor Meirelles, também tenha sido incendiada, o que põe em cheque a catequização do Brasil.

 

FLOYD NIX

O sapo na lagoa brejeiramente lavava o pé. Preparava-se para ir ver os restos do incêndio, informado que havia sido que em meio aos destroços escapara incólume a ossada de Mama Sapa, o mais antigo batráquio escavado pela Companhia Pás de Antanho. O que o sapo tinha dúvida é se a Arte pode ser refeita por todos ou ao menos por um. Muitos desastres sociais são querelas incendiárias. Vitimados pelo lamento excessivo o mundo pouco a pouso se desfaz. De nada adianta salvar os catálogos telefônicos, porque as linhas de emergência há muito foram rompidas. O sapo viu fugindo pelo matagal um homem nu, peludo como um bosque abandonado, gritando olha que lá vem de novo o mesmo varal de escritos escatológicos de sempre. Quem sabe alguém ainda sonhe com Pasárgada ou a Terra Santa, porém o sapo sabe bem que não se coaxa no dilúvio.

 

DOC FUMEX

Sapo Brejeiro se foi, subindo em dez horas a encosta do Pão de Açúcar, um dos mais altos do Rio de Janeiro, e justo em cima do Cassino da Urca. Era quase ora do xou… Brejeiro assestou sua velha luneta, pra escrutar a janelinha do camarim de Carmen Guirlanda, a saracoteante vedette do samba… Afinal, Brejeiro era o Senhor do Brejo Fundo, e recebia em casa própria a elite da saparia, respondendo familiarmente às perguntas mais indiscretas, e relatando anedotas picantes e aventuras de caçadas às moscas varejeiras… Mas… a todas essas… Carmen Guirlanda não apareceu na janela.

 

FLOYD NIX

O que poucos sabem é que as janelas se tornaram as orelhas preferidas da psicanálise. Assim mudamos de túmulo, embora a morte permaneça a mesma. Mesmo que se entupa de monturos o Pajeú de ontem jamais será o Tietê de hoje. Sapo Brejeiro, em sua última conferência, provou que detritos não fazem autocrítica. Nova falange de desastres começa a por suas mangas e nabos de fora. A Encyclopédia Labrosse anuncia que em próxima edição se incluirá um verbete destinado a explicar a analogia entre sofás e orelhas que levou a pique as ciências da cuca. Até lá, como dantes, como dantes, todas as revelações são quiméricas, todas as compilações são originais.

 

10. A ÚLTIMA QUENTINHA

 

Um fã ardoroso e galhofeiro grita do lado de fora do teatro e lá de dentro se ouve a resposta sem que se saiba o dono:

 

– Dona Clotilde, onde estás?

– O oráculo comeu!

 

CORDEL VERTIGINOSO

ANTES QUE O BOI DURMA



1. PRESCRIÇÕES DO ACASO

 

FM | Wilson Fisk, personagem criado em 1967 por Stan Lee (hoje um verdadeiro Midas da indústria dos super-heróis: gibis, televisão, cinema) e John Romita Sr., é uma das figuras criminais mais temidas de todo o universo Marvel. Arqui-inimigo de heróis como Demolidor, Justiceiro e Homem Aranha. A série Demolidor, para a televisão, teve uma belíssima performance de Vincent D'Onofrio como Wilson Fisk. Revendo sua biografia, encontramos que à pedido da esposa, Vanessa, Fisk se desfez de seu império criminoso, as Indústrias Fisk, tentando porém matar o Homem-Aranha pela última vez antes de se aposentar. Tornando-se depois, gerente e diretor da HIDRA de Las Vegas. Na edição da graphic novel Daredevil out (no Brasil ganhou o título de Demolidor revelado), de Brian Michael Bendis e Alex Maleev, publicada em 2015, há uma curiosa afirmação da esposa de Fisk, em jantar com Matt Murdock (Demolidor). Ela confirma haver vendido o prédio da Torre Fisk para nada menos que Donald Trump, e observa: “Creio que ele mudará o nome para Trump alguma coisa, mas, seja como for, esta propriedade não terá nem o nome e nem os negócios dos Fisks”. Como o mundo perdeu a completa noção do que é realidade ou não, será que esta é a verdadeira origem da Trump Organization?

 

ZS | Talvez a Fisk Power seja mesmo a atual Trump Tower. A realidade virtual está se tornando mais forte que a realidade factual. Uma se torna, cada vez um espetáculo da outra, em vice-versa simultâneo. Um fenômeno de espelhismo totêmico coletivo, que explode no século 21, e vai se adensando cada vez mais…

 

FM | Ao abrir uma lata de conserva, não importa que dali saia uma feijoada completa, um caldo de pupilas de ostras ou a coleção inusitada dos cascos de todos os unicórnios fabulares. Tudo ali está rigorosamente preparado para manter a data original de sua clausura. E naturalmente se registra igualmente inconfundível uma data de vencimento da magia. A lata de conserva foi algo que no passado repugnava a criação artística e hoje se converteu em seu método preciso de sobrevivência. Trocamos a eternidade pelas técnicas de durabilidade, cada vez com mais curto prazo de validade. A fraude totêmica é uma evidência criminal de nosso tempo. Quantos deuses caíram em desuso simplesmente por não caberem na lata de conserva?

 

ZS | Caíram pelo menos 783 deuses, dos quais 334 da Grécia. Em nosso livro, verdadeira encyclopédia totêmico-rupestre, apresentamos, conforme o ladino leitor já terá percebido, bela coleção de estampas-duplas, levando assim o comprador trinta estampas pelo preço de quinze!… E quanto mais estampas adquirir, maior será o abatimento que abiscoitará. Elevando-se indefinidamente este aumento de desconto pela quantidade de estampas compradas, o colecionador poderá, se quiser, se tornar um milionário e abrir um museu de estampas na Rua Augusta em São Paulo, ou na Quinta Avenida em Nova York. Prometemos comparecer à inaugura$ão do Museu, quando ofereceremos nossos autógrafos aos melhores fregueses. A leitora adepta de arte fotográfica certamente já terá percebido, entre nossas estampas, uma substanciosa série de instantâneos em raio x, onde se podem apreciar, além de inúmeros monumentos, curiosos flagrantes do que se passa no interior, cenas de cama e mesa, algumas de íntima beatitude, e outras quiçá mais ousadas. Os mistérios da alma humana postos a nu pela surrealidade totêmico-rupestre…

 

FM | Este foi o primeiro tratado recolhido por falta de assinaturas. Na verdade, eram estudos. Fomos vendo de que modo deuses de distintas cosmogonias suportavam a concorrência. Quantas madres dolorosas possuíam passaportes falsos quando cruzavam as fronteiras invisíveis do mito. Ninguém compareceu ao funeral de Salomão. Aos poucos foram rodeando o abismo de seitas perigosas. Novo horizonte foi forjado para que olhássemos pela janela o dia começando sempre forçado a apresentar uma oferta nova. Quando enferrujamos de tal modo os ferrolhos epopeicos, já não cabe a ninguém preservar o próprio nome. Tornamos inúteis as flautas mágicas e desprezamos o poder do cálice de lágrimas. As prateleiras do Mercadinho Consagrado passam a ser a nossa referência existencial.

 

ZS | Vamos então abrir nossa lata de… conversa, e jogar na mesa as cartas que estão lá dentro: Castelo, Coroa e Rainha de Copa e Cozinha. Trata-se de um Tarot Moderno. Num Tarot dos séculos anteriores, haveria uma Rainha de Ouros, mas jamais uma Rainha de Copa e Cozinha. Porque antigamente havia o Valete de Copas e a Dama de Cozinha. Por encomenda do Barão João Batista Drummond, o jogo-do-bicho foi inventado em 1893 pelo mexicano Manuel Cevada. Tinha de ser Cevada, pra alimentação dos bichos do Jardim zoológico do Barão e preparação de cerveja pros jogadores. O jogo era pra levantar verba com uma loteriazinha montada no Zoo, os bilhetes levavam uma figura cada, da coleção de 25 bichos, e no fim da tarde aparecia no mastro a bandeirola com a figura do bicho vencedor. Os insondáveis mistérios totêmicos foram violentamente agitados pelo joguinho, multidões acorreram subitamente ao Zoo e em 1905 já tinha se alastrado por todo o Brasil com força irresistível, e jamais pôde ser refreado pela Polícia. Era duma honestidade extraordinária. O freguês apostava na mesa do boteco uns três tostões com o moleque do bicho, que vinha de bicicleta recolher as apostas. O recibo, um papelzinho rabiscado. E o freguês poderia ganhar uma fortuna colossal. No dia seguinte, infalivelmente, aparecia o moleque do bicho, e dava um embrulho de jornal que continha a fabulosa fortuna. Não precisava contar. Estava correta e completa até ao último tostão… A honestidade infalível do Jogo tinha um caráter sagrado que fortalecia o caráter da população. Infelizmente o jogo-do-bicho foi destruído pelo tráfico da droga. E a Honestidade, que se abrigava no Jogo-do-Bicho… hoje em dia anda meio sumida.

 

FM | O dilema é que passamos do Estado Novo para o Estado Nada de Novo, e nessa ponte pênsil ao menos um dilema se manteve: o que fazer com a Rainha de Copa e Cozinha? Até hoje não conta o que ficou para trás, porque nisto radica um de nossos fracassos vorazes. Nunca soubemos quanto custa o tempo, pois sempre despertamos ao fim da manhã diante de uma sacolinha com as moedas de um futuro próximo. O futuro garantido sem limites com o tempo se desgastou de tal modo que o presente começou a ser tratado como um novo tratado a ser adequado às conveniências de momento. As massas se liquefizeram por muito menos, assim como o romantismo e o cérebro infantil. Os mensageiros que dessem um jeito para que ninguém os pegasse enquanto grafitavam nossa real descendência nos muros da pátria. A noite repousava em suas pálpebras gastas. Os talismãs reescreviam o oratório das crenças em todas as esfinges. Quando o silêncio ousava sussurrar, quem se dignava a ser honesto? Soube que quando morreu Deus ninguém entrava em acordo acerca do destino de seu cadáver. Eu então indaguei se alguém chegou a ver o defunto. A morte de Deus é uma metáfora de nossa desolação, apressou-se a garantir alguém. Ora, pois se é metafórico o velório, nosso sofrimento não passa de uma noite naufragada em maus lençóis. O céu que nos proteja, reza a multidão em busca de reconciliação.

 

ZS | A Rainha de Copa e Cozinha recebeu de bandeja a Coroa do Estado Velho e nomeou pra Chefia do Governo o Ministro Fenecido de que o Gabinete caiu na fossa da orquestra, onde se encontrava Daniel com seus leões que comem capim pra ver se conseguem dar um futuro melhor ao passado imperfeito, já que o Daniel é Profeta e nas suas Profecias faz a História do Futuro, começando seu livro no último capítulo e avançando pra trás faz a Profecia retrospectiva até chegar ao presente do indicativo (que ele mostra na folha com o dedo indicador), enquanto nosso Governo do presente… Qual deles?… O Governo que caiu da jaqueira?… Ou o Governo que subiu, mas… está sendo posto em dúvida por nosso Tribunal que ora conta com probos Juízes dispostos a botar todos os Parlamentares no tintureiro. De modo que o presente da Nação está indo cada vez mais para o futuro do condicional imperfeito do subjuntivo. Isso quanto ao presente… Mas no passado as coisas não vão melhores, pro Estado Velho: a Rainha de Copa e Cozinha descobriu algas tubulares e filamentosas nas barbas do Ministro Fenecido… Algas velhas, todavia de pelo menos 477 anos, e que oferecem novos índices do valor da inflação, de modo a melhor avaliar as péssimas condições do Mercado, seja à vista, seja a prestações.

 

FM | E o Passado eventualmente delira dizendo a boca pequena e trêmula que um dia já foi um simulacro de Futuro. Farelos mofados de pastéis de Belém contam uma história similar, simulada nas melhores provas de caráter de um povo tão alinhado pelas cartilhas da devassidão maquiada. Os tratados secretos tiveram reescritos seus títulos, capa, lombada e folha de rosto, onde antes líamos: Todos são deuses, agora a estratégia é garantir que Todos são inocentes. Rábulas foram contratados para argumentar que houve trapaça, ludíbrio e ingratidão. Porém no centro da praça, os olhos vendados, ocupando o cargo de Dama da Justiça, a Esfinge garante que houve apenas indesejada revelação. Houve até quem atribuísse à falação excessiva, por mais que escorreita, a água da moringa servida no Palácio da Voz Franca, certamente adicionada de grãos de chocalho. Ao claustro também compareceram condignos representantes dos que nunca souberam de nada e daqueles estranhos tipos que se recusam a reconhecer sua assinatura nos anais da República. O que se lamenta é o exílio espontâneo e às pressas de todos os valetes do baralho das Profecias, rompendo-se assim o acesso do povo à realeza. O argumento da fuga delata toda a trapaça: nada entre nós é mais imprevisível.

 

ZS | Segundo cascateia O Blogo, estaria a notória assecla de Charles Nacerda, Viúva Arruda de Ubatuba, mesmerizando os Valetes de todos os baralhos e Tarots, a aprontarem greves e manifas, exigindo melhores salários e ascensão hierárquica. Isto porque os Ases e Coringas tendem a subrepticiamente se colocarem em posição acima dos Valetes. Segundo as damas nevropatas do Clube da Brotoeja, os ases são uns vis sindicalistas mesmerizados pelo presidente Betúlio Bargas, que faz fofocas e discursinhos chochos por toda parte, até de seu balcão no Teatro das Folias Brejeiras, de que é assíduo frequentador, para dar decidido apoio à arte dramática nacional. “Revista de Rebolado não é Arte Teatral!!!”, vocifera Charles Nacerda na Tevê Brotoeja, e rosna espumando de raiva, rasgando o jornal Última Zorra, arrotativo comuna melancia disfarçado de progressista, que está levando o país pirambeira abaixo para implantação do Bolchevismo na América Latina… Até o famoso escritor existencialista debochadão Janpol Sastre, pra ir a Cuba incensar o Frinel, passará pelo Rio pra ouriçar a moçada da Força Festiva (por sinal com belas mocitas) e os estivadores subversivos do Cais do Porto. “Não estamos à beira do abismo… Já caiiiiimos!!”, brada o Nacerda, e rola babando pelo chão, de língua de fora e olhos revirados… Entra a Viúva de Ubatuba e traz-lhe um copo do Vinho Bromato de Sódio.

 

FM | O caso foi parar na 13ª Delegacia de Maus Hábitos. Nacerda levou consigo seu fiel escudeiro, Alaúde Chaves, que tomou a algazarra ao pé da letra e a transformou em um martelo agalopado. A caminho de lá, no vuco-vuco da boleia, os valetes que não fugiram a tempo reclamaram dos maus tratos e urravam pela presença de algum representante do Sindicato da Canastra. Não se sabe como, pelo cair da tarde apareceram umas meninas com certos ângulos avantajados e uma economia bizarra de roupas. Cantarolavam o Hino Nacional em ritmo de pagode e não faltaram dois cabos a improvisar tamborim e agogô. “Não é verdade que o douto Nacerda ocupe seu tempo a decantar as cartas vazadas de nosso baralho secreto.” – Bradava como se soletrasse uma petição o rábula Chaves, logo acompanhado pelo coro das meninas: “Chamem o Procastinador, chamem o Procastinador”. E ele: “Este folguedo deve ser reescrito, pois sua letra está ficando maior do que as margens da melodia”. O jogo parecia de todo contaminado e já se podia confiar em nenhuma de suas cartas. Nacerda, como último apelo, defendeu que a única coisa que não se podia mais acatar era a sinceridade. Segundo ele, todos se valem desse afamado clichê e assim se introduz em cena um excesso de confusão que pouco a pouco descaracteriza a própria tragédia. “Fujamos dos truques explosivos da arte. Aqueles que teimam em ser sinceros, que busquem novas formas empíricas de denúncia.” Ao dizer a última fala levantou-se dali e saiu seguido por Alaúde Chaves que cantarolava o refrão de uma modinha que havia acabado de compor.

 

ZS | Nacerda na certa teve esta acerba revelação, da inanidade da sinceridade, ao perceber o triunfo esmagador do Presidente Trumpo, que muda de ideologia e troca súbito de gravata, de modo a desconcertar seus parceiros e rivais da Europa, Arábia, China e Lapônia. O único que o enfrenta é o Kim Jon Tex, chefe hereditário da Xoréia do Norte, que modestamente declinou a coroa que seus súditos fanáticos ora insistiam em oferecê-lo, como presente de páscoa. Embora modesto, Kim Jon Tex é duma ferocidade de tigre de bengala!… Aliás, ele usa uma, de jacarandá. E ora se prepara, este Tirano Iluminado, a lançar um foguetão atrômbico contra o Alaska!… Onde a população está atônita!… Mas não creio haja perigo pras famílias numerosas, que possam sem problemas dispensar um tio velho despótico, desmiolado e pobretão, ou uma sogra de poleiro que não para de aporrinhar a família. Nem na missa ela sossega, e o padre passa para o sacristão batina sacerdotal e crucifixo, e o incentiva a ser um bravo. Certamente, face à ignorância satisfeita que ostenta a atual juventude, esse padre paradigmático quer educar o sacristão com disciplina de severidade espartana. Enquanto isso, no Alaska, as mães não levaram, esta semana, seus filhos à escola maternal. Outra medida prudencial foi o fechamento das tratorias: o fogo dos churrascos poderia fazer o foguetão explodir, com consequências incalculáveis. Todos estão de prontidão, três apitos, motoristas a postos. A prontidão durará enquanto pender a ameaça do foguetão xoreano. Mas breve se acabará tal situação desconfortável. Seja que o Kim Jon Tex mude de ideia, ganhe talvez uma gravata de presente do Presidente Trumpo… Seja então que o foguetão caia no Mar de Béringue. Se tal acontecer, não haverá, contudo, perigo pros pinguins.

 

FM | Foi fácil. Mandei buscar na casa de Bravejão Xiita seu tabuleiro de guerra naval. Agora vamos fazer dele uma tábua Ouija e anotar os quadrantes onde devemos disparar os traques atômicos. Bravejão é um mentiroso, espírito salafrário, falsificador de quaresmas, mandou por na caixa uma Tábua de Esmeralda confeccionada na Esplanada do Samba. Graças a ela todos os disparos bateriam o catolé. Soube que houvera presentado Kim Jon Tex com uma tábua dessas. Mas sei reconhecer uma boa madeira, aqui temos a melhor Ouija para as amarrações necessárias. Água do tabuleiro e que se reconheçam a firma do alfabeto convocado. Deixemos de lado o Baralho Atormentado. Quero aquelas cartas de veludo, com as bordas levemente chamuscadas. 40 anos se foram até a chegada de um novo eclipse. Amanhã cedo o mundo inteiro empretecerá por um daqueles segundos que desorienta a eternidade. A cada décimo de segundo corresponderá um porta-aviões. O Trapo Obscuro insiste na brincadeira do copo, mas não vamos uma vez mais repetir o truque barato da Caneca Divina. Desta vez temos que implodir a sala de métodos do Departamento Quimérico. Ideal seria matar dois coelhos afogados na mesma cartola. Chamem o capitão Nemo. Se deixarmos passar este eclipse só daqui a mais 40 anos. E ninguém merece essa reprise.

 

ZS | Um tabuleiro de xadrez de batalha naval!… Precisamos adaptar as peças: o Rei das abobras Dom Manuel; a Rainha das abobras, Dona Tareja; o Rei das roxas, Sultão Oberdan; Rainha das roxas, Odalisca Soraya; bispos das abobras, Nóbrega e Anchieta; bispos das roxas, o muezim de Istambul e o de Alexandria; cavalos das abobras, Camões e Ruy Barbosa; camelos das roxas, Saladino Astuto e Rodolfo Valentino; torres das abobras: de Belém e do Tombo; torres das Roxas: Catedral de Santa Sofia e Serralho do Sultão; peões das abobras, Ruy Barbosa, Maurício de Nassau, Vasco da Gama, Cabral, Carmem Miranda, Vanja Orico, Inês de Castro, Tágide. Haverá ainda um segundo tabuleiro que se coloca na gaveta da mesa onde se joga a partida. Sendo dois quadrados do tabuleiro de cima furados para que as peças do tabuleiro da gaveta possam subir e entrar no jogo a qualquer hora; das peças do tabuleiro inferior constam o submarino do Capitão Nemo, o tesouro dos Nibelungos, sereia Dolores, nereida Téthis, Netuno, baleia Moby Dick, Lord Jim, e várias carcaças de galeões espanhóis afundados pelos corsários britânicos.

 

FM | Vamos explicar bem direito essa questão. Pensemos em Xianggi. Ah sim, o tradicional jogo conhecido por Xadrez Chinês. O que era simples passatempo ao chegar a trote moroso nos cercados da dinastia Jurema tornou-se um mapa de guerra. A dupla de adivinhos Cage & Schoenberg montou um quiosque de consulta grátis no Battery Park em Noviorqui, cabana favorecida pelo cenário enevoado que permitia aos eleitos concordarem com quase tudo. Ali tanto se recuperava os amores perdidos quanto se amealhava uma impensada fortuna. A devoção democrática produz verdadeiros sacerdotes inacabados, que vendem um pouco de tudo como precedentes do melhor futuro a que temos direito. Há quem diga que arte e dinheiro foram finalmente concebidos como siameses bem diante do Jardim Esperança, erguido como memorial solidário com as vítimas da Aids.

 

ZS | No fundo, um esbulho dos políticos, o de nos prometer precedentes dum melhor futuro, que, bem ou mal, virá por si próprio quer o queiramos ou não. Melhor fariam as Cassandras de nos conseguir um melhor Passado. Mas os Políticos se esquivam de promessas para o Passado, porque lá eles não poderiam mais nos enganar. Este Passado esburacado e sempre faltando pedaços, nós já o conhecemos, e continuamos sem saber se foi melhor como foi, ou se, ao concertá-lo, não estaremos preparando um presente bem mais desastroso do que ora temos. Passado e Futuro são duas abobras do Presente que desaparecem no Nunca Mais.

 

FM | O mistério das abobras desaparecidas não se desvendará tão facilmente.

 

ZS | As Duas Abobras são um mystério totêmico-teológico: são as duas torres da fachada das grandes Cathedrais medievais, elas querem ostentar as suas Duas Abobras… São as Duas Tetas da Fé, possantes… que a Notre Dame de Paris ostenta com a confiança de imponente Dama que conhece o seu Poder. E porque, pras duas Tetas, um só Sineiro… um gigante corcunda?… Victor Hugo, gênio tocado pela surrealidade… tinha acesso ao Oculto. Os Russos, dada sua herança cultural alexandrina, adoram as tetas douradas… As Tetas da Dama Presente, que desaparecem no Passado e no Futuro, pra nunca mais…

 

FM | Duas abobras foram dadas como sumidas e logo se descobriu cruzando as ruas de Roma um poeta calçado nelas. O pastor Clemente Reique dele se aproximou, como se o reconhecesse, e disse: – Ah o senhor é o poeta dos amores submarinos… E ele, disfarçando a voz, retorquiu: – Desde que cruzei o Riachão do Atlântico devo minha humanidade ao Conde, de maneira que aqui eu sou apenas uma Brecha Enorme que presta atenção em tudo. E trouxe comigo meu tabuleiro com fundo falso. Querendo jogar comigo temos ali um lugar apropriado. Tomaram a rota em silêncio, Clemente e Conde Murilo. Um silêncio repleto de estratégias, incendiado por jogadas planejadas e restos de truques desolados. A verdade veio a pique ao se descobrir o inferno que era a convivência de muitas daquelas peças. Como arejar o espinhaço das damas e convencer as torres a se deixarem escalar? Como disfarçar em bosque o lodaçal por onde trotavam os Nibelungos? Gut Gotten! Ouviu-se na praça o espatifar-se de uma voz que vinha de uma das torres do Forte dos Juízos Tombados. – A todo galope, a todo galope, mudemos a posição de algumas peças, antes que o destino releve suas convicções. O Conde deixou abater um de seus peões, o já desfigurado Nassau, antes que Clemente percebesse o que pretendia fazer com a carcaça do Pérola Negra.

 

2. A CORTINA CARECA

 

ZUCA SARDAN

No blog Megafone, de Raul Milliet, saíram hoje dois artigos, A dança dos deuses, sobre Maradona, com a foto de um enorme painel do Zuca Sardan para a Capela Sixtina, O milagre do gol… Papa Ponchito, torcedor argentino, é favorável à sua colocação na Capela, mas conta com maciça oposição do Conselho dos Cardeais. Raul Milliet ora pediu-me para ajudar a epalhar a notícia… no que aliás Fidel Castro e Lenine se adiantaram, por escolas e hospitais, inclusive no Lyceo Pytanga, onde contaram com o apoio do Reitor Finel.

 

DOC FLOYD

Certamente o grande mequetrefe do futebol mundial havia descolado um tablete prensado de bom pó com um dos coroinhas da Lapela Sixtina. Sempre te vi mais a fim do Milagre do Goliardo Borges, de quem o Papa Ponchito deveria estar mais enrabichado, graças à tecelagem familiar onde são tecidas as tramas mais rocambólicas da sociedade argentina.

 

ZUCA SARDAN

Exato… Buenos Aires, Roma e Firenze têm as mesmas maquiavélicas obsessões…

 

DOC FLOYD

Em meio a isso tudo, só nós dois seguimos fazendo gols de placa, sem comprar as placas de gol.

 

ZUCA SARDAN

Pois é… Já furamos as redes das traves dos mais variados estádios… Mas… os juízes anulam, e os cartolas fingem que não viram. E nosso clube então… Lanterna de Sokrates, segue esquecido na 3ª divisão… competindo com times de loucos, drogados e psycopathas…

 

DOC FLOYD

Não dividimos mais nada, é a solução (de bicarbonato com raspa da pedra pomo) para a reconfiguração do mundo, conosco somente escaparão as aves do céu e os umbigos cristalinos do mico coração de leão…

 

ZUCA SARDAN

O Monopólio da Revolução pra Lanterna de Sokrates! Protestos de Bilula, e dos Esquerdistas Rebulicionários.

 

DOC FLOYD

Nas feiras do tipo TudoTem chove bugigangas rebulicionárias de toda cor e forma, inclusive um sem-número de versões falsas das lanternas socráticas. Dizem que em uma delas foi inserido um feto do Trilula, daí que as vendas tenham disparado.

 

ZUCA SARDAN

Marquês de Sade engrossou o caldo.

 

DOC FLOYD

Este há muito engrossa o caldo de caridade com o próprio esperma e come bastante beterraba para escrever com a urina vermelha.

 

ZUCA SARDAN

Baixou o santo…

 

DOC FLOYD

Outro dia ele mesmo me disse que se baixasse alguma santa daria uns traços nela, o que no dizer sadiano vai dar direto na rua do estupro…

 

ZUCA SARDAN

Realmente o Marquês não sossega… Está… solto!…

 

DOC FLOYD

Bretão Solúvel nem de longe imaginava a tolice de filiar o Marquês de Saldão ao clube do amor, da poesia e da liberdade. Já pensou na refestança no Bar de Vênus?

 

ZUCA SARDAN

Ninguém sabe porque o Bretão resolveu colocar o psicopata no ápice do Surrealismo… a não ser para sacanear o burguês… Só Buñuel e Salvador souberam tirar humor do sucedido… no L’age d’or

 

DOC FLOYD

Os dois espanhóis fizeram das tripas de Bretão o coração de seu humor lancinante e Buñuel com Lorca vestidos de freiras escrachando dentro de um ônibus em Madri eram tudo o que Bretão jamais conseguiu ser…

 

ZUCA SARDAN

Na tela, retângulo preto, com letras em arabescos - - - FIN

 

DOC FLOYD

Depois a fita ficava correndo na maquininha até o fim, despregava do carretel, o filme caía no chão, e se perdia por entre as pernas da multidão…

 

MULTIDÃO

BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!

 

DOC FLOYD

Manhã seguinte, cedinho, a turma da limpeza acha brincos, camisinhas e amendoins no carpete…

 

ZUCA SARDAN

Acho que agora, definitivamente, acabou.

 

DOC FLOYD

Por um instante, nada acaba. O próprio fim antecede o princípio. Tenho remoído sobre essas peripécias do tempo por conta do romance que rascunho…


ZUCA SARDAN

Exato!!! O próprio fim antecede o princípio!… A Serpente Ouroboros…

 

DOC FLOYD

O princípio da tecnologia de reversão. O futuro dando pistas ao presente.

 

ZUCA SARDAN

Bravoooooo… bela tirada!…

 

DOC FLOYD

O que tira atira na tira atirada do tiro.

O gato engoliu a língua três vezes.

A torta de morango não tarda a esfriar.

 

ZUCA SARDAN

O gato tem sete línguas … Mas só mostra uma cada dia.

 

DOC FLOYD

Quando a gata Fabiana pariu surrupiou as sapatilhas de Noé e nelas aninhou seus 7 gatinhos.

 

ZUCA SARDAN

Passas do Marquês de Sade pro Walt Disney com a maior facilidade!…

 

DOC FLOYD

Qual nada! Esses 7 bichanos são do espólio do Nelson Quaresma, que certa noite invadiu o Canil Central para roubar passas.

 

ZUCA SARDAN

Nelson Quaresma morreu das mordidas dos molossos do Canil. A Morte às vezes se apressa, só pega a foice e chega pelada pra ceifar o freguês.

 

DOC FLOYD

Daqui não passarás, disse a ceifeira. Mas o escarcéu já estava no ar. A bicharada vinha de todo lado.

Quaresma logo pensou em nova peça: O vestido de noiva de dona abelha.

 

ZUCA SARDAN

Dona Abelha vai casar com um rapaz distinto, mas muito zangão, com asas de brim não encolhe.

 

DOC FLOYD

Zangão Zangadão não pensou duas vezes, ia por dona abelha nos eixos e vender mel a valer, uma Vale do Mel Doce ele montaria…

 

ZUCA SARDAN

Nenhuma espécie de atividade insetífera é mais alimentícia do que o mel, e nada sobrevive de tão valioso dum passado desjejum como uma chave para a reconstituição da História culinária de uma Nação.

 

DOC FLOYD

O mel e a seda foram os dois rios caudalosos da riqueza humana, até a chegada da prata, seguida pelo silício. Hoje o planeta violentamente se satisfaz com soja e boi. No Grande Mercado não há menor cotação que a das almas injuriadas…

 

ZUCA SARDAN

BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!! Palmas ensandecidas da platéia em delírio, cai com estrondoso baque a…

 

CORTINA

KATAPLAAAAFFFFFFFFFFFFFF !!!

 

DOC FLOYD

Essa cortina está uma molengona, a toda hora caindo de madura, dura nada, mal dura, a mais pura fantasia… Cai a nuvem repleta de chuva, cai a pena do falcão peregrino, já se sabe, tudo cai, porém nada como a cortina que de tanto cair agora é a prima dona.

 

ZUCA SARDAN

O rádio possante de mogno ressoa na voz do Licenciado Astrogildo, perdigotoso e apocalíptico:


ASTROGILDO

Prezadas Cenouras y Cabalheros de nossa dialética plateia!…

 

PLATEIA

(dança de cossacos) Racatraca - Racatraca-Traca-Traca!!! …

 

ASTROGILDO

Bravooooo!!! Belíssima quadrilha libanesa!!! Com vossa estrepitosa expansão de explosivo entusiasmo comovestes nossa sensível Cortina que caiu de frêmita emoção!… os autores do capolavoro e o diretor de nossa equipe internacional, emotivos, com mal contidas lágrimas borborejando aos olhos, vos agradecemos… oh, Filhos da Pátria, Pai dos Heróis e Mães dos Necessitados!… Gratíssimos pelo exorbitante desagravo, a apoio à nossa equipe!


PLATEIA

Sossega, bode fanho!!! Nós aplaudimos foi a comovente queda de nossa seduzida e abandonada Cortina…


DOC FLOYD

Pela enésima vez cai a cortina careca, decidida a por fim naquela conversa mole sem beira ou esteira… Ao que tudo indica, dessa vez ela não mais se deixa erguer, grudou no chão com todas as suas forças. O fim agora remarca seu princípio. As chances são mínimas de que o tempo faça a nossa prima-dona recuperar sua aveludada imponência.

 

PLATEIA

Fúu, fora! Queremos a volta da cortina!

 

3. JOGRAIS DO PURGATÓRIO

 

DOC FLOYD

As carapuças eram ajustadas a pedido do Marquês e delas cuidava Esmeralda, a moçoila dourada, cedida ao Purgatório por Frei Feijão após a morte do Corcunda da Lapela Sixtina. Além de boa costura Esmeralda as deixava com um laço hábil de onde cabeça alguma poderia arrepender-se e escapar...

 

FREI FEIJÃO

O Marquês de Sales é um vil sálico-porquista. Fez das piores num Fabulário Porquinhol, quando escapei por pouco de ser aprisionado no seu sinistro castelo, em que organizava satânicas orgias… Acabou, por fim, após 777 infâmias, aprisionado na Bastilha.

 

DOC FLOYD

Em velhos papiros e rolos nada higiênicos foi lavrada a obra que é o espelho antecipado de nosso mundo de prevaricações. Como a época rangia limitada pelos cartéis da nobreza, não deram por conta que as suas infâmias eram uma certeira previsão do século XX, tão escanchado no próprio ego que não atinou para o caudal de reiterações de suas novenas profanas. E agora este XXI que é o próprio renascimento da Bastilha a céu aberto.

 

FREI FEIJÃO

As atuais porcalhadas desenfreadas não diminuem a importância dos pioneiros esbodeamentos do Marquês de Sales, que ele legou em bela coleção encadernada, de herança espiritual pra pornocracia industrializada do Século XXI, diligentemente atuante na televisão, já na programação vespertina, sabiamente misturada com números esportivos, culinários, infantis, sociais, políticos e culturais, e noticiário pormenorizado de crimes variados, de que as cenas sangrentas são apreciado quitute para atrair a atração do programa de permeio a filmes de pornografia mais primária, destinada às classes mais desfavorecidas.

 

SAPO CANAL

Uma noite as quatro Cassandras fizeram seguidas funções na pracinha do Majestic. Quadro cadeiras a toda prova e o mundaréu se coçando com os relatos de toda sorte de luxúria. Uma noite de martírios, açoites e banhos dourados. Uma das Cassandras, mais afoita, foi buscar na plateia a brilhosa pataca de seus gozos. Com a sua bundona de quermesse engolia todos os varões e gargalhava como uma possessa. A Cassandra mais jovem dava lições de como o prazer pode ser constante. Enquanto as duas outras recolhiam as roupas do público e improvisavam um coral.

 

DUENHA DOLORES

Ay!… que belhessa…

 

ASTROGILDO

Es berdad, Duenha Dolores…

 

SAPO CANAL

E choravam de rir enquanto regiam a cantoria.

 

CORAL

Se atreva seu bacurau a comer no meu cercado

Logo um chute na pança o fará perder a fome

Não venha cantar de galo nas dobras de meu terreiro

Ou seus bagos no jantar servirei a qualquer um

 

ASTROGILDO

[para Duenha Dolores]

Bagos, que lo sepa, son los del toro muerto en arena, que se los comen después…

 

DUENHA DOLORES

¿Después… de qué, Don Astrogildo?…

 

ASTROGILDO

Después de muerto, por supuesto, Duenha Dolores…

 

DUENHA DOLORES

Pero ahora me ha dado ganas de probar sus huevones, aunque sean fuera del cuerpo…

 

ASTROGILDO

No me venga con eso, que la Muerte anda por ahí, en su caballo pateando la tierra.

 

SAPO CANAL

A terra arada pela Morte tem um gosto sofismático, parece ser um pasto cozinhado e temperado com sutilezas de espíritos decaídos. Dizem que os defensores da terra plana são o melhor adubo para as fanfarras dessa assombrosa senhora.

 

MARQUÊS

[finalmente, porém apenas a silhueta desenhada em uma parede do canto] Ah mas quanto espero um dia enrabar essa donzela, morta ou viva, não me importa, desde que seja a dona Morte.

 

ASTROGILDO

Por piedade, Doc Floyd, este guinhol está sem cabo nem rabo, nem mais sequer cortina, já despedaçada no guinhol anterior… sem pé, nem cabeça, nem chifres, só lhe sobraram quiçá, os bagos, se não forem os do touro de Madrid... morto na arena, como um bravo…

 

DUENHA DOLORES

Nem os bagos, Dom Astrogildo, do touro sobraram, que foram comidos no banquete do Alcaide Bermudez de Madrid.

 

DOC FLOYD

As coisas no Purgatório costumam ser assim, a eternidade a banho-maria, volte um século depois e ainda não está no ponto, há sempre alguém cozinhando o pato da memória. Tampouco no Purgatório não tem cortina, pois as coisas não possuem princípio ou fim, só esse esqueleto do abismo, sustentado em uma moral esfarinhada que amolece o tutano de qualquer um. Por isto a Morte passa ao largo, vez que outra observa se alguma alma veio parar aqui por engano. Talvez por isto o Marquês tenha escolhido como palco de ensaio de suas firulas dramáticas. Outra coisa que no Purgatório não acontece nunca: a desistência da morada, a entrega do cargo, o arrependimento. Quem vem dar aqui fica como um peru em círculo de giz. Ninguém se livra do Purgatório.

 

FREI FEIJÃO

Marquês de Sade só melhorou ao fim da vida, confinado ao Hospício de Charenton, onde o Diretor, gentilíssimo, insistia a que fizesse teatro pros seus inquilinos dementes… num palquinho improvisado do fundo do salão de refeições. O Marquês, malgrado já estar meio gagá e alquebrado por sua vida quase toda passada em variadas masmorras… tocado pela gentileza do Diretor, aceitou comovido… e fez umas pecinhas alegres e piedosas, que foram rejeitadas pela Posteridade, sempre ávida de suas porcalhadas, elevadas à categoria de Obras Primas da Humanidade.

 

O DIRETOR

Mesmo com a morte do Marquês nossos hóspedes seguem compondo seus jograis, algumas picarescas histórias do baú de seus desejos reprimidos. Anselmo Lacarte chegou aqui imerso em grande crise mental, lacrado em seu universo íntimo, mal abria a boca para alimento e medicação. O Marquês lhe deu um papel de destaque como a cortina de suas pecinhas. Anselmo então subia e baixava com esmero, marcando o princípio e o fim das porcalhadas.

 

4. JUREMA E O TESÃO AMALDIÇOADO

 

A noite já tinha entrado nos estratos mais bem forrados da goiabeira divina quando de lá do quintal saltaram dois mancos presumindo que a escuridão e uma velha lamparina da chama gasta poderiam dar ao mundo a miragem de novas divindades.

 

MANCO TONEL

Ando colando em cartas vulcânicas as figuras que darão pelo fim, eventual, do encadeamento lógico da espécie humana.

 

SÁBIO DETÔKA

O encadeamento lógico é o que levará a espécie humana à sua extinção. Sua única chance é enrolar o encadeamento no pé-de-manga, e ir saindo de mansinho…

 

MANCO TONEL

Mas aí tem um dilema eterno: o pé-de-manga insiste em não sair do lugar, argumenta que ficou imenso, e cresce cada vez mais a devorar a sombra da planície das ilusões inteira…

 

SÁBIO DETÔKA

Trata-se de um Pé-de-Manga-Sagrado… Mais uma vez, o Concerto das Nações tira o chapéu para o Brasil.

 

MANCO TONEL

Isto se deve em grande parte porque abriram a caixa de consertos das nações e deram de cara com a imensidão de um vazio silencioso.

 

SÁBIO DETÔKA

A caixa de consertos estava quebrada.

 

MANCO TONEL

Tão quebrada e ao parecer irremediável que logo organizaram um concerto com instrumentos dispersos, a ver se era possível reunir uns tostões para o conserto.

 

SÁBIO DETÔKA

Apitos e reco-recos…

 

MANCO TONEL

Mas nada, público esvaziado, instrumentos desafinados, mais parecia a orquestra do Fellini, não juntamos um trocado que seja.

 

SÁBIO DETÔKA

É que esse público é acadêmico, só quer Guerra-Peixe, o Guarany, e… o Wagner…

 

MANCO TONEL

Já tratei de reenviar o vídeo para o Xu-Manfú, que não apôs a menor declaração de recibo ou desgosto. Nem conserto ou concerto, os peixes estão em guerra na panela e os guaranis traçaram o Wagner no almoço, com pirão de valquírias e a velha e boa água de fogo.

 

SÁBIO DETÔKA

Agora então… Só resta embarcar no trenzinho caipira e subir a Serra da Boa Esperança.

 

MANCO TONEL

Dizem que Dona Esperanza perdeu a serra na bocarra de uma Boa no pantanal. Sequer foi à festança em Currais Novos do Céu.

 

SÁBIO DETÔKA

Isso acontece com as melhores famílias

 

MANCO TONEL

As melhores famílias são hoje um outdoor na entrada do Grande Shopping Barnabé, mas ah como doem…

 

SÁBIO DETÔKA

Quando abre a porta do Saldo Global Começa a Grande Porrada Familiar.

 

MANCO TONEL

Tailandeses e filipinos no saldão da semana, porcos e pérolas embaralhando as tábuas da lei.

 

SÁBIO DETÔKA

E o turco vendendo tapetes gombra ké baratinho, freguês…

 

MANCO TONEL

O turco faria melhor do que insistir em ser videomaker. Mas a quem deleita chá de pó de osso, que trate de raspar o seu bem raspadinho.

 

SÁBIO DETÔKA

O Selim insiste em querer fazer um zuper-8 do Homem Vapor… não precisa contratar ator nenhum. É só filmar a chaleira.

 

MANCO TONEL

Pois de tanto falarmos nele o Homem-Vapor acaba de chiar na panela de pressão, e me escreveu dizendo haver perdido o vídeo turco

 

SÁBIO DETÔKA

O Homem-Vapor é de uma astúcia oriental, e de uma periculosidade de Xu-Manfú … Há sempre um 2° pensamento oculto em suas amáveis crípticas declarações… Xu-Manfú certamente está fumando seu ópio… e quer que tudo o mais vá pro Inferno… Tenha Confúcius seus ancestrais, Buda seu Nirvana… Lao-Tse seu Tao, e Mao-Tse-Tung seu trator… Que lá importa?… Contem eles suas marolas pros parvos… Tenha o Bebê suas Tetas… Xu-Manfú tem o seu Ópio…

 

MANCO TONEL

E fuma como um jargão caído do pé. Tombando nas raias da impunidade, atravessa os séculos com a mesma pá, cavando o que se agigante contra ele.

 

SÁBIO DETÔKA

O segredo do Xu-Manfú é que a força do tráfico tem o apoio místico da galera do fubá.

 

O meu fubá ao sol

eu deixei para secar.

A Jurema chegou cedo

e lavou toda a varanda.

O fubá que estava seco

aprendeu logo a nadar.

A Jurema encabulada

saltou bem na minha cama.

 

Embevecidos com a melancólica voz do prado, os dois troca-leros nem deram por conta, o Homem-Vapor se disfarçou em Surco Talim, pirateou uma nave-mãe nos porões da área 51 e dizem que foi repaginar a Ursa-Maioral…

 

SÁBIO DETÔKA

Homem-Vapor fala muito, mas o que gosta é de estar juntinho da jornalista do Braz-Ximbum, uma bonequinha de molas…

 

MANCO TONEL

Telma Suspíria é o nome dela, e pula e pula, como se as verdadeiras molas as levasse em seu íntimo, eu a conheci no México há mais de uma década, e se riu quando indaguei se ela havia engolido um canguru. Com seu olhar magnético me disse: "Eu sou uma rã".

 

SÁBIO DETÔKA

Cuidado com a Kiki Moleng… se facilitas… te dá um nó-cego nos cordões do sapato, e te passa um coquetel do Rei Coreano…

 

MANCO TONEL

Pois foi em outra festa, bem pra lá do ChiBungai, que conheci o então famoso coquetel do Rei Coreano, apontado por três revistas especializadas como o mais atrativo dos alucinógenos líquidos… Lembro que as paredes da festança pareciam os biscoitos Fraterno, e dei de saboreá-las como a última quimera.

 

SÁBIO DETÔKA

Xu-Manfú e Rei Jonjonga da Coréia cada um tem seu Dadá: Xu-Manfú o seu ópio e Rei Jonjonga os seus foguetões

 

MANCO TONEL

Decerto os dois se matariam mil vezes seguidas, empanturrando a barriga da Grande Baleia devorada por Jonas, o Pacífico. Primeiro exercício de levitação: tornar o desejo mais pesado que o objeto.

 

SÁBIO DETÔKA

Perdemos o salpico na esteira das ilusões, onde os pesos excessivos tinham a última chance de levitarem e as cordas que nos prendem ao mundo poderiam esticar até o desenlace entre sonho e vigília. Os querubins sopravam as flautas uns dos outros. As luzes coruscantes cobriam de efeitos as células que sucessivamente germinavam no umbigo de todas as divas. Quem dera um pomar para reciclar os desejos. Quem dera uma torta onde hibernar as abelhas. Perdemos tudo – ainda grita o Padre Ezequiel, e o tesão amaldiçoado completa o ciclo das tensões.

 

MANCO TONEL

De tesão amaldiçoado, melhor dar uma pausa no andor, e ir pedir uma benção do Padre, e outra da Mãe de Santo.

 

Padre Ezequiel me disse que atualmente a fé não anda movendo nem montinho de areia e que no sótão da capela tem uma caixa de milagres que deve estar comida de bolor. Jararuna, a mãe de todos, lá em seu terreiro, me tranquilizou afirmando que de maldição ela entende e que dará um jeito no tesão.

 

EZEQUIEL

Aí está, o mundo de hoje… a continuar assim, presto virá o Armagedão…

 

MANCO TONEL

E as tropas de Arcanjos, depois de destroçar os pilantras de Belzebú, voarão pra Terra do Fogo, pra comer as Gigantas Patagonas nas escarpas dos Andes…

 

Para onde quer que se mande o cachimbo o tempo fumará seus bigodes, não importam os calos do Tinhoso ou as alpargatas do mocreia, a selva será sempre selvagem dentro dos olhos do lince, e o guerreiro mantém a guarda mesmo em repouso. Credo, assim o cajado se parte e a conversa destripa a língua. Dali… Jurema foi se confessar com Padre Ezequiel. Manco Tonel nunca mais se viu.

 

JUREMA

Ai, meu santo Padre Ezequiel, que faço eu pra obter o perdão divino?…

 

EZEQUIEL

Pois, Jurema, só com umas lambadas…

 

JUREMA

Lambadas vossas, meu Padre?…

 

EZEQUIEL

Mais eficazes serão as lambadas do Sineiro Corcunda, com a corda do sino.

 

JUREMA

Mas as vizinhas vão ouvir…

 

EZEQUIEL

Já estão acostumadas…

 

Jurema ainda indagou se não lhe cabiam melhor umas lambidas, assim os pecados tomavam gosto, se empanturravam e quem sabe até naufragariam na barca dos degredos, ah Padre, deixa…

 

EZEQUIEL

Lambidas só no Purga, quando Catão de Utica está distraído…

 

JUREMA

Ai que eu beijo a pulga dele toda…

 

O PÚBLICO

Beija, beija, beija…

 

CORTINA

O que eu faço agora? Caio?

 

Bem poderia ser o fim do psicodrama, não fosse a dúvida corroer a alma acetinada da cortina. Um lapso e os Manuscritos de Tália soltam a sinopse de sua próxima comédia: Brancaleone e as vicissitudes do Dynamo Astral, sempre um patrocínio das Casas Prometeu e a benção do Papa Ponchito. E à dica culinária desta noite, atenção: Mistura o pó da inquietude em um cálice do talo da fina flor de lótus da pradaria... Ajuda o destino a tomar as mais sábias decisões.

 

MANCO TONEL

Como já disse o homem Fuzed das brasileiras noites: “Os dias que passam, estes passarão, mas, as noites, as noites que passam, ah elas também passarão.” Mas quem passou foi ele.

 

SÁBIO DETÔKA

O Ibralim se foi?… Uma celebridade dos 50s, surpreendeu-me a qualidade desta tirada!… A sua Coluna, agora fiquei desconfiado… talvez tivesse uma graça oculta… que na mocidade eu não saquei. Mas se ele escrevesse um livrinho inteligente, sua Coluna seria cancelada. Se escreveu, ficou em manuscrito, enterrado no quintal.

 

MANCO TONEL

Pois é, o Ibrahim não teria o sucesso que teve, na época, se não tivesse se decidido a ser o bobo da corte, resta a dúvida, agora que ele passou, como as suas noites, se ele era bobo mesmo ou se sagazmente criou o notável personagem…

 

SÁBIO DETÔKA

O Ibralim Fuzed é um curioso caso, meio inspirado no Frunando Fussoa. Todavia, enquanto o Frunando criou seus heterônimos, o Ibralim escolheu ser o seu próprio heteronômio. Um processo singularíssimo, que escapou à argúcia lacaniana do Jório Borbes.

 

MANCO TONEL

Fuzed, também conhecido como Ibr-Fuzarca, recortava fotos suas em cena e as colava em paisagens de vários países, ruas, praças, na velha Enciclopédia Conhecer. Assim o conheci.

 

SÁBIO DETÔKA

Fuzed tentava promover seu irmão Zefud, porém Zefud não ia pra frente nem pra trás. Zefud era irmão, mas não tinha o jeitinho do Fuzed, de empacotar dondocas finas com grazzolas velhas frouxas, mas ora, se as dondocas gostavam, tudo bem…

 

MANCO TONEL

Pois logo dali deu a entender Ibr-Fuzarka que se mudara, por algum tempo… quando a rigor se tornou invisível e visitava as peruas chiques com seu colar de contas e elas em suas mãos suavam o perfume de suas ânsias.

 

SÁBIO DETÔKA

Assim, pois, desvendado o mistério: Fuzed é o Homem-Vapor que apavora os cinemas dos subúrbios da cidade!… O pavor do Homem-Vapor é contagiante e a inquietação ganhou as manchetes dos jornais, de sucesso em sucesso, foi avançando o filme irresistivelmente em direção ao centro da Metrópole. E Zefud foi erroneamente identificado com o Homem-Vapor. O Destino já estava escrito em seu próprio nome!… Recônditas são as sendas da Fatalidade…

 

MANCO TONEL

Não resta dúvida. Recônditas são as sendas da Fatalidade…

 

O PÚBLICO

Ohh-oooooh-oh

 

A CORTINA

Agora é o jeito. Caí, em definitivo. Este foi meu último suspiro.

 

5. O LENDÁRIO COSMONAUTA FRECHE GORDO

 

Freche Gordo me disse certa vez ter tomado todas

as precauções para que a última viagem se desse

sem conflitos, pregando no leme um piloto automático

que encontrou perambulando pela Sucataria Pajeú.

Agora sim, poderia tomar todas as cervejas do boteco.

De tão sábio, Freche Gordo é o melhor piloto do mundo,

conversando e bebendo no barzinho da cabine.

Nesse giramundo florido de espumas douradas

Nosso ébrio cosmonauta chegou a pilotar quatro naus

ao mesmo tempo, confirmando a teoria

de Plasmo Alencart da irrefutável existência

de vidas paralelas, além do mar Caribe…

Freche decerto tem vidas paralelas dele mesmo.

Uma mulher em cada continente, e um apetite

voraz para o drama conjugal com cada uma.

E tais cenas se desdobram por afinidades em outras

tantas ocorridas em cada porto, em especial quando

essas vidas paralelas se encontram pelas tavernas.

Para cada uma das esposas Fercho confessa:

És tu, minha rainha, meu presunto, meu pé de manacá,

a única mulher que desencarde a razão de minha vida…

E em uma nuvem sorrateira se dissipam as ilusões

da coitada, quando pelos corredores de seu castelo

de sonhos vê passar outras tantas que embora

com ela se pareçam são mais do que suas sombras vãs.

E o que diz então Freche Gordo para a desditosa?

Só tu, querida, existes para mim, pois essas

outras tantas… são meras sombras que passam…

E tantas outras passam que por mais que a jovem

plebeia queira entregar-se à crença de um amor sem fim

algo em seu espírito titubeia e o desencanto brada:

Oh Freche, não me enganes, não suporto mais esta vida!

E logo rebate o amante contumaz: Não te tortures, Manon,

por umas borboletas efêmeras que se esvaem na brisa

da tarde e no dia seguinte são apenas pó ao vento…

E Beltrana Farnica, agora sabemos seu nome, insiste:

Oh Freche, a tua borboleta azul já não sabe o que fazer

com tantas espigas falseando o meu desejo, tantos ventos

levando o cardume de meus ardores por escuras lagoas.

E de seus lábios salpicados de encantos Fercho desfere:

Mi mosca azul… ¡Eres tú, mi amor, de alas de oro y granada!

E assim tão desfeita em aflições nossa bailarina conjugal

pela manhã cedo arruma a cama desfeita por outras damas.

 

CODA AUTOMÁTICA

 

FLOYD

Sugestão: O Zuca apronta um desenho, eu aqui lhe inspiro um fundo e uns badulaques…

 

ZUCA

Muy bien, Floyd, Grazzzzie pelo convite!… Vou já começar a aprontar. Abbrazzzzzi / zzzzzzZuca

FLOYD

Magnífico. Aí eu mando tudo para a Meg Triplóvica.

 

ZUCA

Wunderbar… Já apontei o lápis e afiei o bico da pena de gralha… agora só falta achar o pincenez… E que mais?… plek-plek-plek!… Ah!, sim … … o papel.

FLOYD

Experimenta sem papel, ah ah ah…

 

ZUCA

Sem papel é mais fácil de fazer, caso você aceite um desenho falado. Talvez uma novidade, um livro com ilustrações faladas. Apenas, não poderíamos deixar o Doutor Xarkor saber, senão, o prox. n° da Pharol… será inteiramente zpholado… mais difícil de despachar pelo apparat.

 

FLOYD

Do retrato falhado ao desenho falado, que belo percurso… E deixamos Doutor Xarkot no Museu. Ele jamais ousaria mexer conosco, sempre foi um grande barbaças solene e trapalhão

 

ZUCA

Hoje espero sem falta te passar o desenho desemoldurado. Para mim é mais difícil tirar a moldura do que fazer o desenho. A moldura para sair, arranca metade do desenho. Então o desenho desemoldurado tem de ser falado, um curto texto explicando o que ficou faltando. Ou seja, um novo tipo de recensão: a… RECENSÃO RECOSTITUINTE.

FLOYD

Por vezes acontece, se tiras a moldura do desenho, tudo o mais cai por terra, e a terra não costuma ser breve nem leve. Dizem que a história tem um peso insustentável, e que o passado se agarra a cada um de nós como certos alimentos no céu da boca. Dito isto, que venha também a moldura, pois aqui eu posso sempre fazer uma bela festa.

 

ZUCA

Poizé… Tive um trabalho danado pra tirar a moldura, e agora dizes que posso mandar com a moldura… Já não sei se vou ou se fico, já não si se fico ou se vou…

 

FLOYD

Ao final da louça, o importante é o desenho e não o atelier. A obra recomeça sempre do ponto em que a deixamos.

 

ZUCA

Agora… é troppo tarde. Entrei numa fúria louca contra a moldura, passei-lhe o serrote, mesmo que o desenho tenha sido serrado junto. Passo-te a seguir uma primeira metade, se não conseguir recolar as outras duas metades, terei de me contentar com dois desenhos rasgados sem moldura. Talvez aí, uma nova fórmula, para a arte: o desenho reconstituído. Já comecei a tentar fazer, mas não me lembro bem, qual a parte de cima, ou qual a de baixo. Talvez então te mande em pedaços e tu os reconstituirás o melhor que possas, porque não me lembro mais exatamente o que fosse, mas sei que havia dois desenhos ocupando verso e reverso do papel. Há um naco da Queda da Bastilha, e outro da Jangada da Medusa. Mas num naquinho extra, aparece o Napoleão discretamente se coçando com a mão por dentro da camisa.

 

FLOYD

A esta altura o papel acabou revelando um diálogo secreto seu com a pluma, quando ele lhe pediu que levantasse a perninha e o deixasse fazer o melhor desenho. A moldura de olho na cena, comprimiu o peito e disse que por ali a imagem só se estabelecia se ela o permitisse.

 

TODO FIM É UM PRINCÍPIO

 

6. NADA NO MUNDO É DE TODO IMPERFEITO

 

ARAUTO

Manhosamente incrustada no majestoso palacete luso-tropical em estilo dinâmico, a sede provisória do Triplov sonda a possibilidade de receber para uma boa conversa um dos mais prestigiados ilusionistas de nossa época, Florium Blavesko. Ele acaba de criar um palácio de papelão, arquitetura que alcança um perfeito equilíbrio entre o invisível e o transparente. Como bem sabem nossos leitores, O papelão é um dom dos papeleiros do Nilo, para enganar o Destino. O mortal se escapa daqui; o Destino o escorava dali… Vamos ver no que isto pode dar. Mas eis, vejo aproximar-se uma dama e… ora!, vou bater o bastão presto PAF-PAF-PAFFF!!! E agora com vocês…

 

ZUCA SARDAN

Dama, Arauto de bosta, é o cu da pata preta!… Ponha um pincenez na bicanca, Seu Admeto de Bosta… Haja saco de cossaco!… Pois é, Florio, que tal se acaso encetássemos uma entrevista, contando com a participação inopinada de Anita Borgia, sobrinha-neta do genial Papa Borgia, um santo, que por sua sábia bula, mudando um pouco mais a Oeste o Meridiano das Tordesilhas, garantiu a existência do Brasil… e de nossa atual entrevista. Ou os prutucas ficariam acampados na ilha Fernão de Noronha. Sua sobrinha-neta, ora já talvez, com sua manha florentina, escondida atrás de uma das colunas gregas magistralmente imitadas em papelão-mastigado do pataphysico palco do Auditório, uma joia architectônica psychodélica do architecto Orgaz Maya.

 

FLORIUM BLAVESKO

O papelão é a casa dos desvalidos. Os precavidos colecionam papelões desde os seringais da infância. Ao invés de ode, celulose…

 

ZUCA SARDAN

O papelão é como a música… já vem da infância, tal como o Mozart menino de violino…

 

FLORIUM BLAVESKO

Amanhã coruja vai fazer ninho em casinha de papelão,

deitei pedacinhos do santo de gesso, São José que se

partiu, hospitalizado em bom papelão, amanhã o refaço.

Papelão, papelão, que escola boa de recomeçar…

De remendo em remendo, a cada dia um novo repente.

 

ZUCA SARDAN

Magnífico, Florium!

 

FLORIUM BLAVESKO

Este poema, escrito ontem mesmo, talvez faça parte de uma série que ando escrevendo pelas mãos de uma diaba que ainda não quer se revelar, heterônimo com o qual publicarei um livro.

 

ZUCA SARDAN

Meus augúrios do maior sucesso.

Prepara-te… porque se o sucesso for grande… terás de te travestiçar pras photos!…

 

FLORIUM BLAVESKO

Sim, já me anteciparei e cuidarei de uma breve série fotográfica; pedirei a Woman Reina que cuide dos cliques mágicos, por certo, por certo.

 

ARAUTO

[Olha súbito, nervoso, o relógio] Ai!, cáspite!!! Eu estava meio cochilando e o espetáculo já começou!… Mas enfim, vamos fingir que só agora a peça vai começar, após eu bater o bastão, e saudar o… DISTINTO PÚBLICO!!! PAFF-PAFF!!! PAFFF!!!

 

[silêncio indefinido, capeado pelo acrílico da incredulidade. Arauto olha para Zuca Sardan em sinal de inquietação. O que estará havendo? Onde está a dama entrevistadora, cujos passos já se ouvia aproximando-se do centro da redação?]

 

CORTINISTA GODOFREDO

[sottovoce, por trás do pano] E agora, Arauto, se a plateia se impacienta?…

 

ARAUTO

Pois é, Godô, agora sentamos na coxia à espera de Anita, a prometida dos deuses…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Tudo bem, mas se ela seguir não chegando, o povão vai começar a s’amotinar… e aí então?…

 

VESPINA

Meu senhor, isto é um absurdo. O senhor quer ser entrevistado ou prefere se entrevistar sozinho? Por que?

 

ARAUTO

Ah finalmente alguém chegou. Talvez fosse outra a dama esperada, mas agora pelo menos temos como acalmar o povão…

 

VESPINA

Ah, era por isso? Estava esperando pela Anita? Pela Papisa também? [Vespina ri até chorar e finalmente gargalha. Depois seca as lágrimas e fica muito séria de novo.] Anita está viajando, só volta daqui a três anos e a Papisa está em retiro espiritual com um pajé amazônico. E nenhuma das duas é jornalista, meu senhor, como iam entrevistá-lo, o que o senhor tem na cabeça?

 

CORTINISTA GODOFREDO

A cabeça custa a crer o que tenha, de quem herdou, pra quem vai dar.

 

VESPINA

Tudo bem, vamos começar de novo. [Estendendo a mão, cada vez mais séria.] Boa tarde, meu senhor. Como vai o senhor? E a sua esposa? Soube que o senhor agora é transformista. Verdade? Fake news?

 

FLORIUM BLAVESKO

Jamais fui tão destratado por qualquer canal de notícias! Como vou querer ser entrevistado, se estou metido nessa ousadia arquitetônica de criar gigantescas urbes de papelão! Ora, que destino mais incerto o da roda da fortuna! A mocinha achou de se pegar com o espectro escandaloso da trama, me azucrinando com essa de transformismo. De qualquer jeito, estou disposto a começar de novo o que sequer havia começado. Aqui estou. Façam de mim a sua próxima notícia!

 

DYRCEO

[Entra, de microfone na mão.] Bom-diiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaa, para todas no palco e na plateeeeiiiaaaaaa!!!

 

PLATEEEIA

DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!! DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!!

 

ARAUTO

[Entra, indignado, e interpela Dyrceo.] E quem é o senhor, para entrar assim no palco??? Fora!!!!!

 

PLATEEEIA

Fora você, Arauto Buuurrroooooo!!! Fora, Panacaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!

 

DYRCEO

Sentiste, rapaz, a minha importância?… Eu sou Dyrceu, o Locutor favorito das Ouvintes da Rádio Tupy!…

 

FANZOCAS

[Em delírio] DYYYRRRRRRCEEEEEUUUUUUUUU!!!!

DYYYYYRRRRCEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!

 

DYRCEO

Não se preocupe com Dona Vespina, Doutor Blavesko! Faça a entrevista comigo. A Rádio Tupy tem alcance em todo o Globo Terrestre!!!

 

FLORIUM BLAVESKO

Como fazer a entrevista contigo! Eu sou a notícia! O esplendor do fato inspirado e insubstituível! O primeiro heterônimo feminino criado por um homem e o autor de uma expansiva obra arquitetônica feita no mais legítimo papelão egípcio!

 

DYRCEU

[De microfone.] A Senhora não quer que eu a entreviste, Dona Vespina? Seria magnífico, imagine só, na Rádio Tupy: A Entrevistadora Entrevista

 

VESPINA

Ótima ideia, Dyrceu! Eu entrevisto o transformista e você entrevista a entrevistadora. Será a primeira entrevista simultânea da História.

 

DYRCEU

Mas claro, Dom Florium, que o Senhor é a própria Notícia!!! Por isso estou aqui… para… captar a Notícia!!! E lançá-la pela Rádio Tupy em todo o Globo Terráqueo… e pelos satélites interplanetários russos, americanos e chineses para o Cooosssssssmmmoooooooooooooooooo!!! Temos acordo com a TV Medéia, para distribuição televisiva apoiando a nossa irradiação no Brasil e toda a América Latina!!! Tudo isso sob o alto patrocínio do Café Cometa!!!

 

FLORIUM BLAVESKO

[Estala uma gargalhada excepcional.] É bem possível que agora nos entendamos. Alguém me sirva uma batida de saquê com tangerina, enquanto aguardo as perguntas. Três pedras de gelo…

 

ARAUTO

Que está esperando, Godô?… Traga uma bandeja de drinks e aperitivos pro ilustre elenco!… e… a batida de saquê com tangerina, pro Doutor Blavesko!…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Pra já, Admeto, parto feito flecha e logo-logo chegarei.

 

DYRCEO

Pois então, Doutor Blavesko, como se sente, agora que se precipita nesta metamorfose de autoduplicação?

 

FLORIUM BLAVESKO

Agora que as pitangas já reconhecem as pradarias de onde vieram, sim, eu diria que me sinto em casa, casa dupla, bem pensado, pois se souberem o que perguntar certamente teremos a melhor explanação sobre heterônimos e aproveitamento papelônico em conjuntos residenciais. Por onde começamos, então?

 

DYRCEO

Precisamos de um pequeno aproche histórico, pra que nossas queridas ouvintas e estudiosos ouvintos… pois, Doutor Blavesko, já podeis perceber minhas preocupações com o sexo das palavras… o vocábulo Ouvinte é visivelmente um transexual, algumas vezes é O ouvinte, outras vezes A ouvinte… meu professor de gramática, o impoluto letradíssimo Frei Feijão, ensinou-me que a luta contra o transexualismo deve começar com o combate à subversão idiomática… o vocábulo Ouvinte é um transexual descarado que precisa ser enquadrado. Todo o cuidado é pouco, Doutor Blavesko, contra a orgia de transgressão sexual que estamos vivendo neste século 21, perverso, subversivo, safado… Que acha o senhor, Doutor Blavesko?…

 

FLORIUM BLAVESKO