DOIS ENCONTROS
1. TROQUEL TROCANTE
FM | Você chegou a New York em 1960, ano marcado pelo
início do Estado socialista em Cuba, seu país de origem. Nos anos seguintes
teríamos, entre outros acontecimentos, a instalação dos mísseis soviéticos em
território cubano e o fracasso daquela invasão anticastrista na baía dos
Porcos. Entretanto, para você que desembarcava no inferninho contracultural
nova-iorquino aos vinte anos de idade, que significado teriam as notícias
vindas da ilha? E que impacto inicial teria lhe provocado a entrada em New
York, ou seja, em que circunstâncias você saía de Cuba e entrava nos Estados
Unidos?
JK | É interessante que se comece com uma pergunta política.
Parece que na América Latina o escritor está condenado a “meter-se em política”.
Saí de Cuba em 1960, com vinte anos de idade, mais por razões poéticas
do que por razões políticas. Não é fácil aclará-las mas, a princípio, a vocação
poética pode exigir o movimento para fora, a viagem, a transumância. E sentia
que se ficasse em Cuba minha dedicação teria que ser outra, e que a viagem, o
traslado, não seria possível. Sou claustrofóbico, tenho essa tendência: e ficar
implicava a claustrofobia.
Tinha vinte anos, estava inquieto. La Habana, todo o país,
se politizava. Isto não me
agrada. Cortázar fala, em certa ocasião, de poder ouvir Bela Bartók sem ter que
ouvir os alto-falantes da praça com a voz de Perón. Interessa-me essa ideia,
essa outra ideia de cidadania, essa outra pátria.
Sucede então que a revolução estipula: “Aqui se deve estar contra ou a
favor da revolução”. Isto, e minha inquietude, decidiram minha saída. Não
tenho, é o que me digo, porque estar contra ou a favor. Entendo, claro está,
que há momentos em que a radicalização é imprescindível. Porém a radicalização,
o extremo, deve ser apenas um momento e não um ideal ou, muito menos, o Ideal.
Opino que ser radical é ser irreal, e que é um modo fácil de obviar a vida
trocando-a pelo heroico, essa outra banalidade burguesa, essa porcaria de
grandezas e mortos e batalhas campais e utopias. O real, o complexo, o viril é
a normalidade. Uma revolução permanente me exige algo que não posso
dar nem muito menos fazer. Eu aceito a radicalização, a revolução impermanente,
momentânea, e estou “disposto a tudo” durante um tempo, contraditoriamente
breve, mas realmente radical. Depois, à normalidade: aos arados e ao “deixem-me
quieto” para escrever ou quebrar a cara. Para mim o permanente é o impermanente,
a sucessão contínua, a vida para adiante, que se acaba, e não a vida unívoca e
inequivocamente política e revolucionária.
E assim, pois, me fui. Ao sair de minha pátria (nós não dizemos país,
como se diz em muitos países da América Latina), optei pela vida que levava
dentro de mim: a da escritura, a da desaforada boêmia, a dos erros da
aprendizagem; as notícias dali passaram a ser notícias de jornal, certo que
íntimas e dolorosas, porém em última instância, por serem políticas, de menor
interesse para mim. Não sou um homem político; e, dentro do homem político que
irremediavelmente sou, minha única política se firma em desejar, fervorosamente,
que desapareça a política, que se viva sem essa anormalidade demasiado frequente.
Cheguei a New York, trabalhei em Wall Street, casei, falei inglês,
deixei de viver em espanhol, fui estudante, me graduei, me tornei professor, me
divorciei, tive filhas, tornei a casar, fui feliz e comi perdizes. Nada mais. E
2.300 poemas escritos desde 1970.
FM | Você publicou seu primeiro livro aos 32 anos de
idade. Como se deu sua entrada na poesia? Como se dá o diálogo entre José Kozer
e seus textos? Há uma espécie de planejamento estético que orientaria a feitura
de seus poemas?
JK | Publiquei tardiamente, por razões puramente
circunstanciais. Estava fora de minha pátria, não tinha contatos, não vivia
próximo de nenhum mundo editorial. Além do mais, eu que havia começado a
escrever muito cedo, com catorze anos de idade, de repente deixei de escrever
durante dez anos. Tinha muito o que dizer, não tinha o instrumental de trabalho
para dizê-lo. Perdi o idioma, e um poeta sem idioma, o que faz? Bem, seria interessante
investigar essa pergunta, ver que tendência para o silêncio pode servir à
poesia do futuro. Somente em 1970 recomecei a bombardear com a
poesia; só que agora, quase milagrosamente, cada vez que me punha a
escrever, escrevia. E essa operação da escritura, que então se reatou, não mais
cessou: seu vestígio, repito, são os 2.300 poemas escritos entre 1970 e 1987.
Assim sendo, em nenhuma ocasião planejei ou perpetrei uma estética, nem
muito menos um poema. Saem, sucedem, ocorrem: são ocorrências e desdobramentos
do inconsciente. Deve haver uma lógica do inconsciente, porém eu não sou o dono
dessa lógica, não a manejo, ao contrário, por ela sou manejado. Maneja-me e me
faz escrever automaticamente, por assim dizer. Prefiro dizer que me
faz escrever incessantemente: disto, sim, me sinto responsável. Peco por
grafomania e estou disposto a pagar o alto preço da proliferação, da
minuciosidade, do excesso. Sou excessivo: se um anjo descesse do céu a dizer-me
que perco meu tempo fazendo poesia lhe daria as graças pela informação e me
sentaria a escrever poesia. E de maneira excessiva.
Porém careço de uma orientação estética. Escrevo. E essa escritura é
sempre a mesma e sempre (aparentemente) mutante. Troquel trocante.
E como os poemas que saem estão e não estão relacionados entre si, opino
que mais que livros tenho (e faço) poemas; e que esses poemas, todos e
sucessivamente, são meu livro; um único livro, primeiro e último, que venho
fazendo. E fazendo desde esta perversão que em Whitman se manifestou como
necessidade de escritura que incluía longas listas de palavras que ia deixando
em seus cadernos, listas que fazia, suponho, simplesmente para sentir-se a
escrever. Não há nada que me dê maior prazer do que sentir que escrevo, que a
pluma e a tinta correm sobre a planície nevada, deixando suas trilhas de bico e
garra de pássaro.
FM | Reinaldo Arenas já declarou, certa vez, que “o
maior mérito da denúncia em uma obra literária é o de que a obra seja literária”.
Crê que a poesia (por extensão, a própria arte) deva expressar algum ponto de
vista?
JK | Concordo, nisto, com a opinião de Reinaldo Arenas.
E mesmo que a poesia diga e aluda a coisas concretas e tenha, por conseguinte e
necessariamente, um ponto de vista, o essencial da poesia não é o ponto de
vista, mas sim o ponto de cegueira e de não-vista por onde se mete: digamos, a
zona branca, do olho cego, por onde faz sua travessia. Creio nos poemas e não
nas opiniões implícitas nos poemas; confio mais no ininteligível do que no
expresso. Apoio as palavras do velho Mallarmé quando diz que “a poesia é feita
com palavras, não com ideias ou pensamentos”. Em última instância, a poesia não
diz nada nem é verdade.
FM | Há uma fatalidade implícita no ato de criação de um
mundo paralelo (imaginário), inevitavelmente conflitante com o chamado mundo
real? A arte, neste sentido, seria então negação da vida?
JK | Separar Arte e Vida, sobretudo assim, com
maiúsculas, é um vício do século XIX, parte da invenção romântica. Não existe
tal separação: um poeta é um cidadão, por mais que possa detestar a função da
cidadania. Enquanto cidadão, ganha a vida, vive como pode, come e defeca; e
dentro dessa realidade, e com a maior naturalidade, quase sem
dar-se conta, faz seus poemas, cumpre com a origem.
O mundo real é o mundo poético. Não se pode separar o mundo real do
mundo poético, pois não podem haver nem dois presentes nem duas circunstâncias
a um só tempo. Quando faço um poema não sou menos cidadão ou quando dou uma
aula não sou menos poeta. Se é que sou cidadão ou poeta.
A vida em um poema é como a vida em uma vida: em ambos casos há
epifania, inércia, sujeira. Inseparáveis. Saio pela manhã, a caminho de meu
trabalho universitário, ando umas catorze quadras para pegar o ônibus que me
leva à universidade. Por esse caminho vejo coisas: árvores, corvos, melros,
algum transeunte da madrugada, casas estilo Tudor. E minha imaginação voa;
minha imaginação imagina. E pode surgir um verso, inclusive um poema completo
durante esse trajeto de catorze quadras, durante essa caminhada rumo ao trabalho.
Ou seja, por esse caminho, simbolicamente, os dois trabalhos se reúnem,
inseparavelmente.
FM | É possível afirmar que a literatura cubana esteja
condenada ao barroco? Em que sentido?
JK | Nenhuma literatura está condenada a nada. E muito
menos a essa questão de gêneros, escolas literárias, modos: isto é coisa do
tempo, do momento histórico; isto é máscara. A literatura cubana nem é nem foi
exclusivamente barroca, não está nem esteve condenada com exclusividade ao
barroco. Isto seria uma condenação: ou seja, por definição, algo que produz a
necessidade de romper cadeias, de romper com a condenação. Sucede que
Lezama impôs ao estrangeiro sua voz, como se Lezama fosse a voz cubana.
Lezama, uma grande voz, não é senão outra voz, outra voz do universal e do
universal cubano. Outro poeta, com sua maneira, sua respiração, sua asma, sua
grossura, sua formosura católica, ecumênica, familiar. Em Lezama, e não sei
quando acabarão por reconhecê-lo, há também um poeta não-barroco, um poeta
linear e, por suposto, sumamente legível. O trabalhoso é lê-lo desde sua
legibilidade e não desde sua aparente dificuldade. Cuba, como qualquer outro
país, tem vivido suas etapas literárias, processo incessante que, como é
lógico, continua.
FM | E no rol dos autores que acaso teriam lhe
influenciado, podemos pensar em Lezama Lima, Virgilio Piñera, Eugenio Florit,
Mariano Brull? O que pensa a respeito destes escritores?
JK | O tema das influências corresponde à crítica.
Dentro do que sei, minha primeira vocação foi Martí, e a este, muito mais à
frente, seguiram os simbolistas franceses. Em seguida, veio Lorca e, já em
New York e ali pelo final da década de 60, Vallejo, Neruda, Parra. Pois bem,
toda escritura é ocultamento (entre outras coisas) e todo escritor oculta os
impactos que recebe, que ama, que o agridem. Sinto que a mim me influiu mais um
quadro que um poema; e que me influi mais uma ambientação interior, um vermeer espiritual,
ou uma palavra repentina e que repentinamente me sobressalta do que, digamos,
outro escritor, outro poeta concreto. Com respeito a Lezama Lima, apenas o li,
resistindo-lhe amorosamente. Se há coincidências, digamos que de tom, são
coincidências, e possivelmente coincidências espanholas e, claro está, cubanas.
Talvez exista um tom poético cubano que Lezama captou, não o sei; se existe, é
parte, pois, de minha existência, Iniludivelmente.
Penso que em certos momentos a crítica, às vezes tão empobrecedora e
míope, sempre necessitada de aclarar, de ditar cátedra, de
afirmar-se (por insegura?), cai na vaidade das influências, atribuindo a muitos
poetas a energia de um chamado Mestre: e o faz por facilitação e conveniência.
E, no caso cubano, Lezama torna-se o gigantesco armazém aonde vão parar os
poetas que escrevem de uma maneira, sendo, essa maneira, difícil.
Ou seja, se o poeta é difícil é lezamiano. E não há tal coisa: o lezamiano é
difícil e não vice-versa, de modo que um poeta difícil é somente um poeta
difícil e não, necessariamente, um poeta lezamiano. Porém à crítica lhe é mais
fácil dirigir sua energia à explicação e não à surpreendente implicação da
misteriosa graça da poesia cuja única influência, se o poeta é autêntico,
próximo, é precisamente a misteriosa graça da poesia.
Quero acrescentar que a mim me influi todo o mundo. Me influem todos os
demais escritores e todos e cada um dos livros que leio, e as coisas que vejo e
observo e sonho. Sou filho de Vallejo, de Lorca, de Buchner, de Trakl, de
Stevens, de Munch, de Turner, de Bonnard; sou descendente da Bíblia, da mesma
forma que da voz de meu avô na sinagoga. Tudo me afeta, tudo me lacera, tudo me
dá vida.
FM | A poesia vence a morte?
JK | Nada vence a morte. Nada a vence em um sentido
presente e concreto. Se a sua pergunta implica se depois de minha morte minha
obra é válida, se esta me perpetua, pois bem: que me perpetue. Porém eu estarei
mortinho e acalorado. Disforme e lápide e a mim quem quiser que me leia.
Preferia não ter que morrer. Não quero ser o rei dos mortos mas sim o pastor
mais pobre da terra, como disse Aquiles a Odisseu. A função da poesia não é
vencer a morte nem a função dos poemas é perpetuar seu autor. A poesia é um ato
apenas levemente funcional, apenas levemente catártico: carece de
ulterioridade, é presente, presença, repetição efêmera no efêmero, fato e
esquecimento, graça e desaparecimento.
Exatamente como a morte. Todo poema, a um certo nível, está tocado pela
graça da morte: caso contrário não seria verdadeiro, posto que o verdadeiro não
pode esguelhar a morte.
FM | Comer e escrever poemas. Tem conseguido fazer as
duas coisas sem que uma destrua a outra?
JK | Perfeitamente. Eu sou um homem prático. Tenho uma
família, levo uma vida normal, me administro. Minhas filhas comem, em casa
levamos uma vida frugalmente burguesa, limpa, muito alegre e tranquila. Sem
luxos e sem espaventos, dentro das medidas que um salário de professor e alguns
horários profissionais impõem. Minha situação prática é boa; às vezes desejo
mais, desejo largar-me daqui, ter dinheiro para viver ruralmente e não ter que
ensinar, malgastar forças do ditoso (em cubano esta palavra,
neste contexto, significa horrível) ensino. Porém não posso me
queixar, seria abominável queixar-me: tenho tido sorte; uma sorte profissional,
uma grande sorte matrimonial e minha casa está em ordem. Por isto, para mim New
York não é o inferno que pode ser para outros, mais visionários que eu, menos
práticos e normais que eu; para outros mais Artaud que eu. Para mim, New York é
uma casa em Forest Hills onde durmo, como, embriago-me, converso, calo, vivo
furtiva e silenciosamente: para escrever escrever escrever.
Não me considero um homem astuto mas, sim, tenho alguma astúcia: a de
ordenar-me para escrever. Sacar tempo ao tempo, digamos, para as coisas da
escritura, para reaparecer em um cenário de silêncio e habitação, de repente escrevendo
um poema.
FM | Tentamos inutilmente dissimular a agonia do real
com uma excessiva dose de obsessão pelo objetivo. A poesia, que é por natureza
uma fonte de subjetividades, como se move em meio a esse ricochete frenético de
simulações e banalidades que é a era em que vivemos?
JK | Toda época tem sua dose forte e imensa de
mediocridade, de filisteísmo, de imundície: toda época é preponderantemente
mediocridade e banalidade. A poesia acolhe e recolhe também essa banalidade,
essa imundície de seu momento histórico: o faz, resistindo. E, a partir desta
perspectiva de resistência, exclama, reclama: se impõe. Impõe-se, expondo
(refiro-me à frase atribuída a Paul Celan, que dizem que disse: “A poesia não
impõe, expõe”). E enche o mundo de suas “subjetividades inventoras,
simuladoras, fingidoras” (recordemos o famoso verso de Pessoa).
FM | Você já tem dez livros publicados. Como poderíamos
situar sua obra no âmbito da poesia cubana?
JK | Se minha poesia entra no âmbito da poesia cubana e,
supostamente, no âmbito da poesia, que é o que todo poeta preferiria, rompendo
barreiras nacionais e efêmeras, é coisa que não sei, nem saberei: nem é coisa
que me corresponda saber ou dizer.
Sendo assim, creio que a respeito da trajetória cubana há algo em meu
trabalho que não se encaixa de todo com o cubano. Esse algo, suponho, tem a ver
com meus numerosos exílios: o da personalidade, o de ser um cubano (primeira e
última geração) de pais judeus, o de ser um judeu de origem ashkenazi na cidade
de La Habana, o de ser filho de um polaco ateu e comunista e filho de uma checa
burguesa e de pais judeus ortodoxos: esses exílios que implicam, desde o
início, uma voz dupla, uma voz no árido terreno da sarça ardente e no tropical
terreno da umidade, do cipó e do desaforado crescimento; voz onde se reúnem a
perpetuidade, suponho, a ancestral voz de meus antepassados e a atual e
ancestral voz de minha pátria de nascimento que, em um sentido misterioso, é,
ao mesmo tempo, pátria de nascimento e de adoção. E, em seguida, o
desenraizamento, a saída, o não voltar nunca a ver Cuba, o levar mais anos em
New York do que os que vivi em minha pátria. Tudo isto se junta para fazer de
meu trabalho algo aparentemente menos cubano do que o dos outros cubanos, algo
menos referencialmente cubano e que talvez tenha muito a ver com o cubano
atual, com o cubano novo que é uma espécie de cubano judeu, de
mulato judeu, de híbrido múltiplo e desenraizado, que perambula e deriva por
toda a terra, conhecendo finalmente a diáspora, mãe nutritiva e verdadeira de
toda criação. Agora o cubano é Joyce ou é Proust em seu quarto macio entre
painéis de cortiça. Agora o cubano deixou de ter uma voz e uma experiência
unívocas e tem vozes, máscaras, experiências. Neste sentido, estamos por ver
qual será o resultado literário desta nova experiência, da experiência de viver
entre eslavos, orientais, entre norte-americanos e entre outros
latino-americanos. Em Cuba eu nunca vi um porto-riquenho ou um dominicano;
nunca vi um mexicano ou um equatoriano; nunca vi um uruguaio ou um argentino.
Em New York, tenho visto até paraguaios.
FM | Desde Padres y otras profesiones (1972)
até El carrilón de los muertos (1987), sua obra mais recente,
quais modificações e sedimentações ocorreram em sua poesia?
JK | A reta tornou-se estilhaços. A linha se bifurcou e,
bifurcando-se, entrou em outras bifurcações e itinerários. Se encheu de
parênteses, de rupturas, de vazios; a linha pôs-se a ziguezaguear, a arquejar.
Esta, simbolicamente, é a modificação que sofreu meu trabalho. Do modo
mais natural e feliz; ou seja, quase sem dar-me conta e, naturalmente, sem que
o tenha proposto. Um amigo me perguntava há pouco se era necessário escrever de
modo tão arrevesado. Lhe respondi: nada disto é forçado, tudo isto é natural. A
escritura é mimética: em meu caso o arrevesamento ou a densidade respondem a
uma matéria densa e arrevesada que não se dobra, que é avara e que o poeta, eco
de ecos, quer entregar tal e qual, indomável, densa, arrevesada. Isto é tudo:
não há uma aposta pelo difícil, mas sim um afazer naturalmente difícil.
FM | Fale-nos deste novo livro que sairá em Barcelona.
Em que sentido você me diz que ele é uma espécie de continuação de La
rueca de los semblantes (1980) e La garza sin sombras (1985)?
JK | Daí que o livro que fará este ano as Ediciones del
Mall, de Barcelona, um desses poucos editores que ainda restam, dispostos a
seguir publicando, e em esmeradíssimas e cuidadas, realmente belas edições, uma
dose de livros de poesia… seja um livro onde desemboca a dificuldade a que me
refiro em minha resposta anterior.
La rueca de los semblantes é ainda preciosista no sentido de que ali, creio, o estético vence o
espiritual. Em La garza sin sombras o espiritual e o estético
se unificam. O novo livro tem um título que implica, na realidade, a presença
de dois livros. Chama-se Díptico e, como em todo díptico, há
dois painéis: um, que é um livro, se chama Carece de causa; o outro
painel (livro) intitula-se De donde oscilan los seres en
sus proporciones. Este livro satura, extrema os anteriores; e satura e leva
a seu extremo toda a trajetória de dez livros que conformam minhas publicações.
A partir deste livro há um amplo material inédito onde se desenvolve uma
poesia que creio reage ante esse processo de saturação que recolhe o livro que
Ediciones del Mall publicará este ano. E reage procurando uma maior
espiritualidade, no sentido de ascese, de despojamento, de lavagem e, caso
queira, de purgação e laxativa. De fato, nos últimos meses os poemas se tornam
mais breves, menos enredados, menos retorcidos; menos jângal e menos cipó.
Tendem, desejam uma velha e nova linearidade: aspiram a uma simplicidade que,
supostamente, não constitui nem um simplismo nem uma simplificação mecanicista.
Além disto, nada mais sei. Temos que ver qual poema escreverei hoje ou
amanhã.
FM | Gostaria de retornar à ilha, ou pensa, como Cabrera
Infante, que para vocês, exilados, isto jamais será possível?
JK | Claro que gostaria de regressar a Cuba, e creio
que, depois da morte, regressarei. Se isto é possível ou não depende das
circunstâncias. Quisera ver algo parecido ao que sucedeu na Espanha por ocasião
da morte de Franco. Não algo idêntico, mas sim parecido, e em princípio esta é
a única possibilidade cordial que reconheço para minha pátria. E poderia
acontecer. Há muita gente de boa vontade ali e aqui. Às vezes os escritores não
são essa gente de boa vontade, mas tampouco devem ser os escritores os que
façam a ponte do regresso. A história é longa, regressará. Não necessariamente
a uma monarquia ou a um estado socialista ou a um estado capitalista: poderia
acontecer que regressemos, pela primeira vez na história de minha pátria, a um
país que se chama Cuba.
2. LER E ESCREVER
FM | A suntuosidade de imagens, a voracidade do verbo,
os resíduos de uma saga familiar – em que consiste o estilo Kozer? Imitação,
aparência, perversão – que espécie de relação sua escrita mantém com o mundo à
sua volta?
JK | Um estilo Kozer? Melhor diria um ocultamento Kozer.
Uma capacidade de escrever roubando, collageando e recompondo
o alheio, preenchendo vazios. Uma maneira voraz de fazer, não enquanto desejo
nem vontade, mas sim como necessidade: estar na escritura é para mim estar no
irremediável. Escrever é não suicidar-se. Escrever é nutrir-se para defecar. O
mundo que me rodeia está por momentos gritando para tornar-se escritura; tomo -
reativamente - uma de suas esquírolas e torno-a poema.
FM | Considera a poesia um exercício de ordenamento das
palavras, a construção de momentos que nada poderiam significar sem o manejo
das palavras?
JK | A poesia é um desordenar de palavras que pretende
fazer-se ordenado. A pretensão de ordem, o poema, é o presente que nos damos
para sobreviver e, de alguma maneira, assistir na sobrevivência de uma Ordem.
Esta sucessão, que é um sucesso, sucede e desaparece. Quem escreve o faz a
partir de uma ordem, a ordem de um poema, e esquece: desaparece.
FM | A utopia é o tema central de nossa existência? Há
uma utopia da escrita? De onde partem os poemas?
JK | Utopia? Esse é o não lugar; o poema ou o momento perecedouro
que nos toca viver é espaço, lugar. Por consequência, não é utópico. Deseja-se
a utopia? Inútil desejar. Inútil desejar o lugar utópico político ou poético ou
transcendente. Não há. Só há efêmera efeméride e desaparição: fato, fatalidade,
instante. Golpe e ausência, leve eco (relativo). Os poemas surgem, em certa
medida, da ontológica necessidade de emparelhar-se com o vazio e tentar,
paradoxalmente, desde esse emparelhamento, sacar matéria sólida, carne e letra.
Os poemas se fazem preenchendo interstício.
FM | Algumas vozes críticas referem-se à notável fusão
de esplendor verbal e coloquialismo em sua poesia. Há também referências a uma
ausência de relato, assim como à utilização da mesma técnica do collage. Que
aspectos melhor definem sua poética?
JK | Eu observo, claro que a posteriori, que
meus poemas necessitam de linguagens várias e outras; pode haver uma linha
mesclada e mestiça que sobrepõe coloquialismo e esplendor verbal (isso é muito
cubano), porém suspeito que ausculto continuamente outras possibilidades,
digamos que intersticiais, onde a linguagem varia segundo cada um dos instantes
da necessidade de escritura, e que esse variar ocorre no poema e no momento de
sua criação, tanto como ocorre no mundo dos sonhos e da vigília, com seus inesperados
deslocamentos e abruptas mudanças de direção. Estamos falando de filosofia e
uma voz nos chama a merendar: e viveram abruptamente dois momentos, duas
necessidades; para isto necessitam de duas linguagens, intercalando-se.
FM | Entre essas vozes críticas a que me refiro
anteriormente há uma que tem se detido de maneira admirável e aprofundada em
sua obra: o espanhol Jorge Rodríguez Padrón. Em seu livro Del ocio sagrado chama a atenção para uma reiteração temática em
sua poesia: a oferenda, o celebratório. O poético e o religioso encontram-se
indissociáveis em sua concepção?
JK | Olha, eu creio que Jorge vê muito claramente minha
necessidade mais profunda e, vendo-a, a reconhece nos textos que faço. Vivo
desde menino no último susto. E, como não sei o que fazer, escrevo, que mais ou
menos é o que posso fazer. Não digo que seja o que sei fazer, somente o que
creio poder fazer. E o faço a partir de todo um aparato (verbal) que tende ao
iniludível, a morte. E quem diz morte e teme, adere como lapa ou mofo ao
misterioso que de alguma maneira encara a religião. Evidentemente, não a
religião oficial e institucionalizada, mas sim a intenção religiosa que brota
do horror, do momento atônito diante da possibilidade do nada, a grande obra.
FM | Ao contrário de muitos poetas, que afirmam não ler
muita poesia, você encontra na leitura de poemas uma grande fonte de diálogos.
Até que ponto sua dicção encontra-se impregnada de tais leituras? A leitura de
poesia resulta em grande fonte de influências?
JK | Por parte. Não leio muita poesia, mas sim que em
certas etapas leio alguma poesia desordenadamente. Um exemplo: nestes dias li
uma égloga de Horácio (a primeira), uns poemas de Seferis e releio algo de
Keats. Mas leio essas coisas de maneira crepitante. Ou seja, de repente
entra-me o repente da poesia e leio. Pego Keats, leio em voz alta, e detenho-me
em um ponto porque aquilo me afeta a tal extremo que se não deixo de ler,
morro. Exagero? Certamente. Ninguém morre de ler poesia. Porém não exagero,
pois da mesma forma como podes morrer montado sobre uma fêmea, o coração pode
faltar-te na intensidade da leitura do Endímion de Keats (que
não é para mim um grande poema). Ou pode suceder que pego um livro de poemas e,
ao começar a ler, ao segundo verso, há algo que me surpreende, e quase sem
dar-me conta, ponho-me a escrever meu próprio poema. Um último ponto: ler os
outros estimula o meu; estimula e interfere. Às vezes, o que faço é evitar ler poesia
em castelhano, afeta-me demasiado e me influi demasiado. É mais fácil para mim
ler em voz alta poesia em outros idiomas, principalmente o inglês.
FM | Segundo suas palavras, seu “erro estratégico é
escrever demasiado”. Exatamente em que sentido considera prejudicial esta
natureza excessivamente prolífera de sua escritura?
JK | Bem, é um dizer como outro qualquer, outro modo de
chamar a atenção. Faz de conta que se trata de uma perversão. Saber e, no
entanto, fazer. Indo contra, contradizendo-se. Estrategicamente, escrever
(publicar) menos é útil: apoia a obra, glorifica-a, criando lenda, mistério,
boêmia para seu autor. Porém essa funcionalidade do distante e inacessível me
incomoda. Estou presente, falo muito, escrevo muito, publico, respondo, emboço-me.
Consequentemente, farto e canso o provável leitor. Bem, o que se vai fazer. Se
o fadigo e se farta de mim, pois então que leia Lope.
FM | Após a publicação de Carece de causa (1988),
você confessou algo em torno de que ali se encerrava uma etapa em sua poesia. “Talvez
com este livro tudo tenha terminado”. Que novo caminho se abriu desde então?
JK | Desde Carece de causa me repito e
me repito. E depois me repito. E de tanto em tanto, entre uma e outra
repetição, encontro um desviozinho, um caminho estreito e pobre, quase estéril,
onde logo vejo a possibilidade de algo em aparência distinto. E instintivamente
o tomo e esqueço. Estive experimentando, por assim dizer, com séries de autorretratos,
com minha própria descarnada velhice esquelética e rumbeira, e com poemas que
tendem a ser mais breves. Porém volto a insistir, não somente em que não sei
nada nem que entendo o que faço, mas também que o único que faço é fazer um
poema hoje, outro passado amanhã, e acumulá-los. Não há livro, não há obra, não
há totalidade; não há antes ou depois de Carece de causa (isto
carece de causa): só há poemas, poemas e mais poemas.
FM | Em crítica escrita em torno deste mesmo livro,
Bernd Dietz assinala que “é possível que o maior desafio da poesia moderna,
desde o início do século XIX até hoje, resida em buscar um novo papel para o Eu
no discurso poético, eludindo o antropocentrismo sem desvirtuar a situação do
indivíduo que dá nome a sua experiência e convoca seus mortos”. Concorda com
ele? Até que ponto sua poesia teria vencido tal desafio?
JK | Concordo. Minha trajetória implica, desde o
princípio, não desejar ser eu; ao mesmo tempo, só soube, tristemente, ser eu;
cair uma e outra vez na armadilha do eu. E isto, do ponto de vista vital,
psicanalítico, político, pessoal, relacional, funcional e, claro, nos próprios
poemas, espelhos de toda a merda própria do eu. Com o passar do tempo, de tanto
desvirtuar esse eu prepotente e antropoide, ao menos consegui seduzi-lo à
fragmentação, a uma torpeza que quase o dissolve. Os poemas dos últimos anos
refletem esse eu desmembrado, inutilizado; um eu ao qual a linguagem confunde,
desordena e se desembaraça de si mesma.
FM | Concordo com você que o século XX seja o século do
exílio e, por extensão, o século da mestiçagem. Por outro lado, lamento que
essa torrente mestiça, dolorosa e sombria, não tenha ainda força suficiente
para fundar uma igualdade entre os povos. Decerto que a experiência do exílio
lapida com mais veemência a expressão poética. O poeta, por sua posição à
margem da sociedade, jamais se privará de sua condição de exilado permanente.
Isto acaso não lhe faculta mais liberdade ao fundar seu próprio presente?
JK | Todos, por Deus, estamos exilados, porque todos, por Deus, temos que morrer. O exílio político não é mais do que uma perversa manifestação: o homem se diverte em perseguir o homem e em exilá-lo, para esquecer seu próprio e miserável exílio. Cada patriarca tem seu outono, e ali o vemos entreter-se com seu gado e suas galinhas, e suas mamãezinhas mandonas. O que faz o poeta é assumir a fundo e irremediavelmente a condição geral de exílio. E, ao assumi-la, entra em sua liberdade, como bem vês e manifestas em tua pergunta. Pois bem, essa liberdade não só é fundacional, mas também que, sendo presente, é santidade. Não há outra coisa para a vida espiritual; e não há outra possibilidade profunda para a poesia. Porém encontrar liberdade, em princípio, é tarefa terrível, que implica ao mesmo tempo um contínuo afastar-se e não estar, que tem que seguir de mãos dadas com um contínuo estar com os demais. Porém não com os demais em abstração, mas sim enquanto ação. Minha mulher Guadalupe e eu agora empenhamos toda a nossa energia e habilidade em conseguir um dinheiro suficiente para podermos ir de New York e deitar os restos em um pequeno lugar que temos na montanha, em um povoado da Andaluzia chamado Torrox. Ali me sinto muito mais livre do que em New York, e me sinto duplamente livre. Estou “com os pobres da terra”, como dizia Martí e entre eles aprendo e a eles ensino minhas coisas; e estou situado em um espaço mediterrâneo de luz e azul e espaço, onde realmente respiro. Ou seja, onde não faço nada. Somente, como as crianças, ler e escrever.
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III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
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Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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