A POESIA DE
PABLO NERUDA
Para Deniz: “o prestígio de Neruda” é “um mistério que, por sorte, me
é indiferente”, e acrescenta: “estou convencido de que, sem seu comunismo, nem
Vallejo nem Neruda seriam tão apreciados”.
Em meus diálogos com o crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón, disse-me que “o Neruda dos anos
30, em torno de Residencia en la tierra,
vertiginoso e revelador, apagou-se em seu empenho de assumir a impureza como
ditado único para sua escritura”. Prossegue: “Este desvio voluntário (eu diria
que obrigatório, desde a coerência ideológica que aceita, a partir de então,
sua poesia) fechar-lhe-ia todo acesso ao espaço renovador (e verdadeiramente
poético) que, nesse mesmo trecho cronológico, abriram e habitaram Lezama e Westphalen e Gorostiza (e não menos Moro, Martín Adán ou Girondo), para configurar essa vanguarda
outra que é a que Octavio Paz empenha-se em identificar com o
período do segundo pós-guerra, centrado na experiência poética que ele próprio
protagoniza.”
Quem situa
Neruda entre os “fundadores da nova
poesia latino-americana” é o crítico argentino Saúl Yurkievich (1931), em livro homônimo
publicado na Espanha em 1971. Antes de tudo, em sua ambição canônica Yurkievich
exclui o Brasil da América Latina, ao mesmo tempo em que torna discutível sua
noção de fundação ao desambientar cronologicamente sua tese. Um exemplo disso é
incluir ali o argentino Oliverio Girondo (1891-1967), quando se sabe que a
essencialidade de sua poesia radica em um livro publicado em 1954, En la masmédula. Antes disto, para citar
um único exemplo, o mexicano José Gorostiza (1901-1973) já havia publicado, em
1939, seu Muerte sin fin.
O livro de
Yurkievich traz dois largos ensaios dedicados
ao poeta chileno. São duas abordagens do mito: uma fundada na imaginação e
outra de cunho histórico. A primeira refere-se a livros como Crepusculario e Tentativa del hombre infinito, enquanto que a segunda detém-se no
estudo de Canto general. Em ambos não
se situa a poesia de Neruda à luz de sua contemporaneidade.
Uma única passagem estabelece alguma conexão, quando o próprio Neruda compara
sua poética à de Huidobro. Diz ele: “apesar da infinita
destreza, da divina arte de jogral da inteligência e da luz e do jogo
intelectual que eu admirava em Vicente Huidobro, me era totalmente impossível
segui-lo nesse terreno, devido a que toda minha condição, todo meu ser mais
profundo, minha tendência e minha própria expressão, eram a antípoda da
destreza intelectual de Vicente Huidobro”.
O crítico
venezuelano Guillermo Sucre (1933) – autor de um dos mais
fundamentais estudos sobre a poesia hispano-americana: La mascara, la transparencia (1985) – justifica o que digo ao
situar a obra poética de Neruda como um dos “grandes e monumentais
solilóquios” da poesia hispano-americana, fazendo falta “vê-la em diálogos com
outras”. Na verdade, acrescento, bastaria situá-la no universo chileno
correspondente àquela geração que verdadeiramente funda a modernidade no Chile:
Gabriela Mistral (1889-1957), Vicente Huidobro (1893-1948) e Pablo de Rokha (1894-1968) – ou seja, sua própria
geração – à qual integram-se outros nomes de importância cimeira: Rosamel del
Valle (1901-1965) e Humberto
Díaz-Casanueva (1907-1994).
Mistral soube dosar com argúcia o espanhol
herdado de Castella à linguagem nativa de inúmeros países hispano-americanos.
Viajante incansável, tinha por declarada essa intenção de “mesclar
vocabulários”, de maneira a contribuir – segundo pensava – para a definição de
alguma mínima identidade. De Rokha era, por sua vez, tão impetuoso e
irregular quanto Neruda. De escrita delirante e profunda,
segundo Díaz-Casanueva “escreveu alguns dos versos mais
belos da poesia chilena e também alguns de seus piores e mais vulgares”. Quanto
a Huidobro, cuja essência poética tem sido
erroneamente drenada entre nós, é o poeta da eficácia dessa multiplicidade
expressiva buscada por todos, havendo condensado-a em um universo próprio,
intrigante e renovador.
Díaz-Casanueva era um desses entranháveis poetas
do obscuro, cuja poesia transbordava imagens as mais insólitas, sem, no
entanto, incorrer em uma erupção gratuita das mesmas. Seria interessante por em
diálogo o Neruda da série Residencia en la tierra com a escritura abissal de El blasfemo coronado, este último de
1940. Quanto ao Rosamel del Valle, ainda menos difundido fora de seu
país, seu largo poema-livro Orfeu
(1944) e Fuegos y ceremonias (1952)
já seriam suficientes para lhe garantir um lugar de destaque na poesia
hispano-americana. Segundo ele próprio, “a poesia obedece a um esforço da
inteligência, a um controle vigoroso da sensibilidade e sua expressão extrai o
ser do sonho em que se agita”.
Há aí um
contraste com a defesa do alheamento estético que pleiteava Neruda. Basta recordar uma carta sua ao
amigo Héctor Eandi, datada de 1928, onde diz: “O
poeta não deve exercitar-se, há um mandato para ele e é penetrar a vida e
torná-la profética: o poeta deve ser uma superstição, um ser mítico… a poesia
deve carregar-se de substância universal, de paixões e coisas.” O curiso é
observar que Rosamel del Valle escreveu uma poesia
verdadeiramente delirante e carregada de uma maior substância poética.
Se ampliarmos o
foco e tomarmos a América Hispânica como um todo, veremos que corresponde à
mesma geração de Neruda expressões como os peruanos César
Vallejo (1892-1938) e César Moro (1903-1956), os colombianos León
de Greiff (1895-1976) e Aurelio Arturo
(1906-1974), os argentinos Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges (1898-1986), os mexicanos José
Gorostiza e Xavier Villaurrutia (1903-1950), o equatoriano Jorge
Carrera Andrade (1903-1976) e o
guatemalteco Luis Cardoza y Aragón (1904-1992). Não seria arriscado
ou irresponsável dizer que a poesia de Neruda não resistiria a uma comparação
crítica com a de seus pares hispano-americanos.
Neruda era um poeta desmedido, irregular
e, sobretudo, obstinado pela enumeração, pela quantificação, o que o tornava
essencialmente frívolo. Em sua obsessão por escrever sobre tudo e ao estilo de
todas as modas literárias, jamais tratou com profundidade nenhum dos problemas
básicos da lírica. Exceto pelo fervor imagético da série Residencia en la tierra (1933, 1935) ou passagens ocasionais de
livros como Tentativa del hombre infinito
(1926) e El hondero entusiasta (1933)
– segundo o crítico espanhol Ángel Pariente, “uma das etapas mais valiosas de
sua larga produção”, embora não avaliada corretamente por seus exegetas –, rara
substância poética encontramos em uma obra tão extensa quanto desnorteada.
Dele disse com
exatidão o ensaísta porto-riquenho Joserramón Melendes: “Esse poeta enciclopédico
limitou-se à quantidade. Neruda escreveu um poema de cada coisa. O
universo tradicional que lhe legaram foi assumido por ele como repertório ou
roupeiro, alternadamente: ou vestia uma escola ou mentalizava um objeto.” No
epílogo à 2ª edição de Laurel,
antologia da poesia moderna em língua espanhola organizada por Xavier Villaurrutia e Octavio Paz, este último, ao situar a recusa
de Neruda em participar de tal projeto, observa: “Como tantos, Neruda padeceu o
contágio do estalinismo”, acrescentando que “essa lepra apoderou-se de seu
espírito porque se alimentava de sua egolatria e de sua insegurança psíquica”.
Sobre a
personalidade de Neruda, podemos ler o capítulo a ele
destinado no livro O continente submerso
(1988), de Leo Gilson Ribeiro. Embora haja um excesso passional no relato da
situação, este texto nos informa acerca de exibicionismos e mesquinhezes, não
deixando de mencionar o ideário de maquinações do chileno para garantir sua
nomeação ao Nobel, o que se deu em 1971. Neruda não possuía o mínimo apreço por
seus pares. Pode-se dizer dele que era um cafajeste exemplar – com sua
ambiguidade retórica: adorável e indesejável. Pouco entendia de poesia e menos
ainda nela estava interessado. No Chile se conhece bem a acusação – tratada
como verdadeiro epitáfio – de Pablo de Rokha, que evidenciava os equívocos
ideológicos de Neruda.
A publicação recente de Cadernos de Temuco não passa de um acontecimento editorial, sem nenhuma importância poética. Pode fazer a festa entre biógrafos, mas nunca despertar interesse entre os cultores de uma grande poesia. São versos de “um rapaz que somente tem quinze anos” e que os escreve “mordido de amargura”, como diz o próprio autor, constituindo uma tediosa sequência de vulgaríssimo romantismo. Encanta mais o périplo que lhe foi destinado: Neruda pediu à irmã que guardasse seus manuscritos e esta os presenteou a um sobrinho que, por sua vez, os vendeu a um colecionador, que os revendeu a uma editora que os acabaria leiloando a seguir, encontrando na viúva do poeta a recusa em adquiri-los, desfazendo a cadeia que seria retomada posteriormente graças ao enigmático aparecimento de uma cópia dos originais. Uma a mais entre as inúmeras histórias em torno desse “grande mau poeta”, como a ele referia-se o espanhol Juan Ramón Jiménez.
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III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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1999-2024
Como siempre, leerte es un gran placer Floriano Martins
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