CAMINHOS DO SURREALISMO
BH
| Não. Para mim é impossível separar os dois conceitos. Surrealista e poeta são
sinônimos, são inseparáveis como conceitos. Penso que a poesia é um meio, um
instrumento com o qual é possível transformar a realidade. Esta lição eu a
aprendi com Aldo Pellegrini, quando traduzi (creio que foi, de fato, minha
primeira experiência com tradução) um brilhante ensaio seu: “Poesia é tudo aquilo
que fecha a porta aos imbecis”. Creio que esta possibilidade é a grande
contribuição do Surrealismo à sociedade moderna e sinto que neste ponto radica
sua potência e vigência.
FM
| Uma vez falamos de Surrealismo e me disseste que ele significava para ti “a
possibilidade de tocar o absoluto”. Podes aclarar um pouco a tua ideia e
dizer-me quais possibilidades tem a gente comum, através do Surrealismo, de
tocar o absoluto?
BH
| Quando me refiro ao absoluto eu
penso nesse momento mágico que se dá quando escrevo poesia. É como se todos os
impedimentos e limitações que impõe a vida diária (que, contraditoriamente
provê os elementos dos quais está feita a poesia), as restrições que inventa a
gente, se dissipassem e, de repente, como por magia, alguém entrasse em um
espaço onde tudo parece claro, puro, visível, sensível, onde tudo é POSSÍVEL.
FM
| Não sei o que opinas das relações entre ciência e religião, mas o que observo
é que há demasiado embate entre as duas esferas e que a arte foi ficando fora
desse tablado de especulações e decisões, o que significa dizer que a beleza já
não importa quando o tema é a precisão científica ou a divagação religiosa.
Observando isoladamente o tema, alguém pode lastimar que o mundo tenha se
tornado feio, simplesmente. Porém, o que houve com a terceira força, a arte?
BH
| Parece que a arte e a ciência, a estas alturas, se irmanaram. É um processo
que, ao meu ver, vem se dando desde o Iluminismo. Eu uso muito material que provém da ciência em minha
poesia, sobretudo das ciências orgânicas. Se eu fosse mais inteligente, e
entendesse melhor os conceitos das ciências puras, como a física (por exemplo,
ao que parece os físicos desenvolveram equações que comprovam que há mais de
três dimensões, que podem ser quatro ou cinco ou seis…), as matemáticas, estou
segura que me serviria delas para enriquecer meu processo poético. Tudo está
relacionado. TUDO. Quem sabe a religião, ou melhor, o religioso, é como a poesia, algo transformador, uma força interior
que permite aos seres o poder sentir, ver, perceber outra realidade, mais rica,
dentro da própria realidade em que se desenvolvem. A mística é possível dentro
do mundo científico e artístico, segundo a concebo.
FM
| Já sei que tuas referências são muito fortes acerca do que chamas de Surrealismo
em sua “expressão hispano-americana”. Como sabes, este nosso diálogo é parte de
um livro sobre a presença do Surrealismo em todo o continente americano. Tua
experiência de vida está situada em Toronto. No próprio Canadá, há como duas
expressões surrealistas, para seguir com tua visão. Como tens relacionado essas
distintas expressões, a partir de uma base, que é europeia, para definir uma
percepção tua do Surrealismo?
BH
| Excelente questão! O problema, segundo penso, é que a vida cultural de Toronto
é muito recente. Até os anos 1970, o mundo artístico era muito limitado aqui.
Tivemos exceções, como o caso de W. W. E. Ross, que experimentou com a
expressão através da imagem; o pintor e artista gráfico Bertram Brooker, cuja
obra pictórica tem referência próxima com o Cubismo. Porém são casos isolados,
que não pertencem a uma corrente, a uma tendência, muito menos a um movimento
artístico como o Surrealismo. A fonte de tudo isto radica no fato de que
Toronto se origina em um conservadorismo extremo, como reação ao espírito
revolucionário e independente dos Estados Unidos. Tudo isto combina com um
preconceito subjacente no antigo mundo anglo-saxônico referente a toda ideia de
excesso ou emoção. Quando eu era adolescente, recordo, minhas colegas de classe
me acusavam de ser too emotional,
como se isto fosse uma falha. Até hoje se percebe um medo, um preconceito em
relação às imagens como forma de expressão. Por isso, a arte e a poesia
experimental se expressam melhor através de formas abstratas e expressões mais
conceituais. Creio que estas últimas são perfeitamente compatíveis com o
Surrealismo, que existiram sempre no Surrealismo (Duchamp, Man Ray, movimentos
como COBRA e R.I.X.E.S.), porém aqui se associam como algo incompatível com o
Surrealismo.
Tem sido excessiva a
ignorância a respeito do Surrealismo no mundo inglês. Eu creio que tem a ver
com o medo da possibilidade de mudança total que propõe o Surrealismo, dessa
ideia de transformação que eu menciono e que é, quando se pensa em sua
totalidade, uma forma revolucionária de conceber o mundo, algo que parece estar
oprimido pela cultura anglo-americana. Talvez eu me equivoque, porém esta é a
minha experiência.
FM
| O Surrealismo no Canadá, em sua aparente complexidade, está definido pelo
duplo ambiente linguístico?
BH | Me parece interessante que uses a palavra “complexidade”. Eu
vejo a problemática como algo extremamente simples. Em Quebec se dá o
Surrealismo e no mundo anglo-canadense não se dá. Em Quebec coincide com uma
reação à igreja católica e seus poderes extremos no que diz respeito à
repressão cultural e social. Ou seja, através de visionários como Paul-Emile
Borduas e seus amigos (os irmãos Gauvreau e Françoise Sullivan são meus
favoritos), tem início a verdadeira revolução cultural em Quebec. E o
interessante é que se baseiam no automatismo, tal como propunham os primeiros
surrealistas, para identificar-se dentro dessa mudança cultural. No Canadá
inglês não se dá nada assim. Só agora recentemente, na última década, é que
alguém pode se expressar como surrealista sem cair no ridículo.
De volta a Quebec. Em uma mesa-redonda que ocorreu há
aproximadamente dois anos, por ocasião de uma exposição retrospectiva sobre Les Automatistes (como prova do marginal
que é o Surrealismo nesta cidade, menciono que não foi possível fazer a
exposição no Museu de Arte Moderna de Toronto, mas sim em um centro cultural em
um pequeno distrito fora da cidade), ali se falava do contexto social dos anos 1940,
quando surge o Surrealismo em Montreal, como a igreja em Quebec controlava o
que a gente podia ler através de uma lista de livros estritamente proibidos; eu
indaguei a Françoise Sullivan, que estava presente, de onde tiravam os textos
surrealistas nessa época? Como faziam para obter todo esse material produzido
na França e em Nova York, por exemplo? Ela me contou que, em seu caso, uma
bailarina e artista do grupo automatista tinha uma irmã que trabalhava como
babá para o dono da galeria Pierre Matisse em Nova York, onde expunham os
surrealistas. Ela trazia de volta a Montreal revistas como Minotaure e outras publicações surrealistas da época. Os automatistes que viajavam a Paris faziam
outro tanto. Ou seja, o tráfico de ideias era entre Paris, Montreal e Nova
York. Nunca se deu tal fenômeno no mundo anglo-saxônico canadense.
FM | Este tipo de tráfico se verificou de várias maneiras em todo o
continente. Revistas surrealistas francesas que foram levadas ao Chile por
Pablo Neruda, por exemplo, passaram às mãos do grupo Mandrágora e depois,
graças a Alberto Baeza Flores, foram parar nas mãos dos dominicanos da revista La poesía sorprendida. Mas note que eu
falei em aparente complexidade. Na
primeira metade do século XX foi muito forte a presença do Surrealismo no
Canadá francês. Há movimentos que são importantes, como Automatistes, Refus global
e Les herbes rouges, especialmente
nos anos 1940. Há todo um sistema: editoras, galerias, críticos, pesquisadores
etc. Já no Canadá inglês o Surrealismo chega um pouco pelas mãos da Escola de
Nova York e a Beat Generation. São ambientes muito distintos e quando em 2004
se publica o livro Surreal estate, de
que participas, logo no título se menciona que há Surrealismo, sim, porém under the influence, e o próprio editor
do livro, Stuart Ross, na apresentação observa que Toronto não é um ninho subversivo do Surrealismo.
Certamente quero a tua opinião sobre tudo isto, mas em especial indago sobre os
ambientes que não são propícios ao Surrealismo.
BH | Não creio que o Surrealismo chegue ao Canadá inglês através da
Beat Generation, nem da assim chamada Escola de Nova York. Em minha opinião, o
Surrealismo chegou a Toronto através de meus pais, Ludwig Zeller e Susana Wald.
A opinião de Stuart Ross contém um erro de tipo conceitual, onde se concebe o
Surrealismo como um estilo, uma
estética, e não como uma filosofia de vida. Os Beats, sim, foram influenciados pelo Surrealismo, sobretudo por
poetas levemente independentes do grupo original de Paris, como os irmãos
Prévert. E há, entre os artistas estadunidenses dessa geração, como Ira Cohen,
aqueles que viveram a aventura surrealista. Isto não se deu aqui em Toronto até
bem recentemente, nos anos ‘90, com as atividades de um grupo de artistas que
se denominam Recordists (William
Davison, Sherri L. Higgins e Steve Venright) que têm levado a cabo atividades nitidamente
surrealistas. Ray Ellenwood e eu nos juntamos a eles em Toronto. Também
colaboraram com os Recordists Enrique
Lechuga e Peter Dubé, um escritor surrealista de Montreal. O único lugar onde
existiu um grupo surrealista em língua inglesa no Canadá foi em British
Columbia, com os artistas Gregg Simpson e o falecido escritor de origem inglesa
Michael Bullock, entre outros.
FM | Poderias falar um pouco de tuas referências surrealistas (não
necessariamente na poesia, porém sem fronteiras linguísticas) no Canadá?
BH | A mim me resulta incrivelmente estimulante a obra de meus
amigos surrealistas Sherri L. Higgins (cujos collages estão na capa de dois de meus livros: The stitched heart e Sew him
up) e William Davison. Conversar com Peter Dubé e Ray Ellenwood sempre me
enriquece. Na plástica histórica do
Surrealismo canadense me inspira a obra de Borduas, cujas abstrações da
paisagem canadense são maravilhosas. E me encanta o que fez Françoise Sullivan
na dança. É completamente transformadora sua coreografia, tão original e bela.
Embora em outro estilo, tem algo em comum com a estadunidense Alice Farley.
Acabo de me dar conta, ao fazer essa recordação, o importante que me resulta a
dança, a festa, a combinação de movimento e som em um espaço tridimensional.
FM | Levaste ao leitor de língua inglesa no Canadá a poesia de uma
reunião magnífica de poetas hispano-americanos (The invisible presence, 1996). Qual foi a reação diante de um mundo
mágico que puseste ao conhecimento dos poetas canadenses?
BH | É estranho, porém esse livro, apesar de não ter recebido maior
atenção por parte dos meios estabelecidos, ainda anda circulando. Os poetas
daqui seguem fazendo referências a essas traduções. Pouco a pouco vou editando
pequenas antologias de alguns dos poetas que aparecem aí pela primeira vez em
língua inglesa, como César Moro, Rosamel del Valle, Enrique Molina, Aldo
Pellegrini e os poetas da Mandrágora.
FM | Como se atualiza o Surrealismo, no plano estético, tomando em
conta as seduções tecnológicas e o ambiente midiático?
BH | Há mais disseminação de ideias, em geral, e me interessam as
publicações eletrônicas, porém me parece que o Surrealismo segue funcionando
como uma espécie de sociedade secreta. Não creio muito na efetividade da
tecnologia. É um aparelho e, por consequência, uma imposição de um poder alheio
ao impulso poético. A criação continua sendo algo que se dá como por milagre,
como por magia. Para comunicar-me com meus amigos surrealistas eu prefiro a
telepatia.
FM | Regressemos à poesia, à tua poesia. Ali está a soma do mistério
e sua carnalidade, é algo que me encanta em uma poética, que não seja o abismo
entre dois pontos, porém a soma deles. Conta-me um pouco de tua vida, como o
Surrealismo mudou a tua vida, como podes mudar a vida do Surrealismo em suas
leituras demasiado desencontradas.
BH | É difícil para mim a vida que me coube viver. Tão difícil, de
fato, essa constante impossibilidade de viver em um mundo aberto à magia do
verbo, às sensações e às imagens, que houve uma época em que deixei por
completo o Surrealismo. Deixei de escrever poesia, tratei de viver de outra
maneira. O que me manteve viva foi servir à poesia traduzindo outros. Porém
escrever através de outros (para mim, isto é a tradução) também se tornou
insuportável. Chegou um momento em que entendi que necessitava reconciliar-me
comigo mesma, que o mundo que eu havia construído ao meu redor, onde dominavam
o doméstico e o trabalho, que esses mundos podiam servir como fonte do poético.
E o entendi escutando música popular. Em um disco do grupo The Supremes
encontrei o eco de minhas nostalgias românticas; em Blonde on blonde, de Bob Dylan, a expressão de minha raiva das
minhas chefes, minhas opressoras no trabalho; em Annie Lennox encontrei a
expressão do quão elegante e estilizada pode ser a presença poética; em Stevie
Wonder identifiquei a ideia do som poético, o que chamam wall of sound: a música e o poético como um universo total; em Sly
and The Family Stone encontrei minhas equivalências rítmicas, essa forma de
justapor contrapontos como se fosse um collage
polifônico. Uma vez identificadas minhas próprias referências musicais pude
finalmente adentrar-me em meu eu e encontrar-me com equivalências anímicas,
como no caso da poesia de César Moro e Jorge Cáceres, poetas cuja expressão do
erótico se aproxima muito da minha, ao menos dentro do Surrealismo.
De uns dois ou três anos para cá estou em um lugar anímico
distinto: é como se a totalidade do mundo estivesse à minha disposição. Tudo é
exprimível, tudo está a serviço da transformação do mundo. Sinto-me
inteiramente VIVA.
∞
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A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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