OS COSTUMES ERRANTES DE ENRIQUE MOLINA
Talvez a palavra mais cara a Enrique Molina
seja relâmpago, mas no sentido de um resplendor que antes de tudo ilumina a si mesmo,
ou se deixa iluminar pelo modo como é recebida sua descarga elétrica no lombo da
paisagem. Esse estado súbito e perene de iluminação que somente o instante nos permite.
Este é o relâmpago da poesia de Molina. Um relâmpago que em cada poema nos lembra
que a vida não suporta esperança ou hábito. Traduzindo, se é preciso, eu diria que
a poesia não tem significado algum para este poeta se não pode ser vivida, se o
leitor não pode de algum modo se reconhecer nela e se ela, como uma paisagem habitada
pela sensualidade da própria existência, não pode expressar sua vida mais íntima.
A vida de quem a criou como uma habitação pronta na medida em que se deixa penetrar.
Esta passagem de uma entrevista concedida a
Carlos Bedoya dá-nos a medida essencial da vida que levou Enrique Molina:
Levo
comigo um sentido de errância permanente, e viajar em um barco é algo bem distinto
de deslocar-se em avião ou trem. Tem uma coisa mais cerimonial, a chegada, a partida,
o cabo, o rebocador. Primeiro eu trabalhei na coberta, e logo como timoneiro em
um barco mercante. O oceano é todo um espetáculo, especialmente o trópico. Sempre
me seduziram os peixes voadores, sobretudo agora quando estão desaparecendo os pássaros.
Sou advogado, porém somente 20 ou 30 anos após o término dos estudos é que me preocupei
em obter o título, o que me obrigou a uma série de tolices, inclusive valer-me de
testemunhas para demonstrar que eu era eu. [1]
Após esta breve e cintilante cascata de dados
biográficos, voltamos à grande fome do poeta, a de uma instância mágica em que a
poesia venha a ser “a versão instantânea do pensamento e do mundo interior mais
profundo”. O sentido de errância com o qual nos deparamos ao ler Enrique Molina
adverte inicialmente que esta é uma condição permanente, que não se trata de um
meio à procura de um fim, de um jogo de metas ou um curso módico de estranhamento.
A caminhada existencial que propõe não se limita ao destino, antes evoca uma atmosfera
de afinidades surpreendentes que vão descortinando um mapa visceral de ambientes
tangíveis e vertiginosos. Sua viagem não é a de um trânsfuga, mas sim a de alguém
com uma profunda ligação com a terra, com a mais inabalável consciência de que o
homem é parte do mundo, e não apenas de uma fatia do mundo.
Uma vez, entrevistado, Molina mencionou alguns
poetas hispano-americanos de sua admiração. Graças às suas viagens marítimas, por
vezes aportou em lugares onde lhe foi possível conviver com os peruanos César Moro
(1903-1956) e Javier Sologuren (1921-2004), e rápidos contatos com o chileno Braulio
Arenas (1913-1988). No Brasil, Molina encontrou em Fernando Ferreira de Loanda (1924-2002)
um bom amigo. Vejamos uma lembrança dessa amizade segundo relato do mexicano Carlos
Montemayor (1947-2010):
Graças a Fernando Ferreira conheci não apenas
poetas e ensaístas brasileiros, como também outros grandes poetas de nosso continente.
Em 1973, Fernando me pediu que intervisse para que algumas instituições convidassem
a Enrique Molina para dar leituras de poesia a fim de que conhecesse o México e
contasse com mínimos recursos econômicos que facilitassem sua estância. Enrique
esteve uma temporada no México e se hospedou em vários pequenos hotéis da rua Luis
Moya, próximo da Alameda. Em certa ocasião, em minha casa, eu lhe ofereci uma taça
de sotol. [2] Ele gostou muito do sabor defumado e doce, algo fresco, dessa bebida.
Eu lhe presenteei uma garrafa, que dias atrás eu havia recebido de Chihuahua, da
qual na mesma tarde ele consumiu mais da metade. Quando Fernando Ferreira chegou
ao México e se reuniu conosco, Enrique explicou as virtudes do sotol comentando
que graças a essa bebida havia sentido a importância interior da passagem do trem
em Todas as tardes, um de
meus primeiros contos. Durante muitos anos, a partir dessa tarde, Fernando me pedia
em suas cartas que lhe enviasse sotol apenas para ele, porque também queria, como
nós, ver passar o trem pelas montanhas. [3]
Molina teve um único livro publicado no Brasil,
Uma sombra onde sonha Camila O’Gorman
(em 1986 pela Editora Guanabara, traduzido por Sônia Régis). Essencialmente poeta,
é quando menos curioso que sua entrada em nosso país tenha se dado através do único
romance que escreveu. Mesmo contando com sua adaptação cinematográfica, não houve
a mínima atenção a este imenso poeta da parte de cá desta América Ibérica desarticulada
entre si por algum motivo mais crível do que a comum justificativa do idioma. Seguramente
Molina sabia que não adentrara o território da linguagem narrativa senão como um
desbravador daquele tema em particular ⎼
os dilemas do amor em meio a uma ardileza de preconceitos morais e religiosos ⎼, experiência que mais enriqueceu a sua poesia
do que qualquer pretensão romanesca.
É preciso entender que a lírica em Enrique Molina
é uma ruptura com a dissensão entre vida e obra. O mundo poético de que se alimenta
é o da existência humana, em seu misto de demência e frenesi, em suas inesgotáveis
formas de paixão e sacrilégio, em seus pedidos de socorro e o extravio de essências
em orgias de toda ordem, a natureza diabolicamente se misturando ao ponto insaciável
de um feitiço que a desvende. Não há Enrique Molina além ou aquém dessa indolência
do horizonte. E é tão lindo lê-lo assim, porque se insere naquele ambiente que mencionava
Kundera acerca de Picasso. Decerto que há outra dissensão delicada na criação artística,
quando adocicamos o sentido de sinceridade, ajustando seu diapasão para atender
às diversas formas de confessionalismo. Em definitivo, a arte não é o lugar de uma
confissão.
Enrique Molina foi um navegante de si mesmo, justamente ao buscar em diversas instâncias uma forma de reconhecer seu espírito e condicioná-lo a uma atuação que pudesse romper as oclusas da existência humana, em brasa viva, testemunhando as perspectivas que iam sendo priorizadas pela própria vida. Sua rota, descrita em seu espírito, sempre foi o nomadismo. Declarou uma profunda afeição pelo surrealismo, em especial no que ele compreendia como um “humanismo poético”. Sua forma única de ortodoxia se chamava abismo, entrega, viver. Seu convívio com surrealistas, em especial em seu país, a vida compartilhada com o grupo em torno de Aldo Pellegrini (1903-1973), ele próprio sendo editor de uma das mais importantes revistas dedicadas ao surrealismo em toda a América, tudo isto ⎼ há mais, há mais ⎼ alimenta certa fatia da história que deseja ampliar seus protagonistas. E aqui havendo mais mencionamos sua relação com o Surrealismo, que não foi a de filiação, mas antes a de uma íntima afinidade. A mesma afinidade que gerou certo lapso da historiografia ao registrar a publicação de Qué (Buenos Aires, 1928-1930) como a primeira revista surrealista do continente. Mesmo que o próprio Aldo Pellegrini, seu editor, tenha posteriormente declarado que os poetas em torno da revista formavam “uma espécie de fraternidade surrealista, que realizava experiências de escrituras automáticas”, como já tive oportunidade de esclarecer em outro momento, não houve o estabelecimento de um grupo surrealista e nem a revista se apresentou como uma publicação surrealista. Por mais estreitas que fossem as afinidades. Somente em 1952, quando se define um forte ciclo de amizades entre Pellegrini, Molina, Julio Llinás, Carlos Latorre, Francisco Madariaga e Juan Antonio Vasco é que o Surrealismo alcança uma relativa adesão por parte dos poetas argentinos. Ao final deste ano Molina dirige a revista A partir de cero. No ano seguinte será a vez de Pellegrini dirigir outra revista Letra y línea. O próprio Pellegrini chega então a observar que somente ele, Molina e Carlos Latorre se declaram surrealistas.
Em conversa com Marco Antonio Campos, deixou
bem claro Enrique Molina sua afinidade com o Surrealismo, ao dizer: “O que trato
é de seguir fiel à ética do surrealismo, muito mais do que à sua expressão literária.
Nisto não mudei: poesia, vida, amor e liberdade me acompanham sempre. Porém no surrealismo
não há, por exemplo, uma visão da paisagem, exceto em Aimé Césaire, um grande surrealista
nascido no Caribe.” [4] Molina já havia
publicado surrealistas como Leonora Carrington, Antonin Artaud e Georges Schehadé,
além de haver traduzido André Breton (O amor
louco) e Blaise Cendrars (Prosa de um
transiberiano). Tinha, portanto, uma visão bem íntima do Surrealismo, suas tensões
e transbordamentos, e sempre afirmou dedicação a uma ética surrealista.
A obra poética de Enrique
Molina está composta pelos seguintes títulos: Las cosas y el delirio (1941), Pasiones
terrestres (1946), Costumbres errantes
o la redondez de la tierra (1951), Amantes
antípodas (1961), Fuego libre (1962),
Las bellas furias (1966), Monzón Napalm (1968), Los últimos soles (1980), El ala de la gaviota (1989), Hacía una isla incierta (1992) e a edição
póstuma de El adiós (1997). Uma parcela da crítica ⎼ vale referir que é ínfima a fortuna crítica
sobre este poeta ⎼ situa os livros
de 1951 e 1961 como seus dois mais altos momentos surrealistas. Estou em completo
desacordo com tal entendimento, porque reduz o ambiente, em termos de linguagem
poética, em que possa atuar o Surrealismo. Não há limites estéticos no Surrealismo
e uma de suas mais altas provocações radica justamente no entendimento de que é
possível invadir toda e qualquer forma de hábito da linguagem e ampliar seus motivos
interiores.
O estranhamento quando adentramos a poética
de Enrique Molina, sob as luzes de uma leitura surrealista, é que não nos deparamos
com as lancinantes imagens que põem em conflito os ambientes cosmopolita e onírico.
A poética de Enrique Molina não se preocupa em negar o que somos, mas antes em afirmar
tal condição, a despeito do que reconheçamos ou não em nossa intimidade. Em face
disto, a paisagem em seu poema é a de uma infestação de sentidos e não o deserto
citadino. E que tenha alcançado essa carícia elétrica de frondosidade da alma, fundindo-a
com a própria paisagem do inóspito, do inabitável, de um mundo repleto de violência
natural, dos mitos locais, do calor contagiante dos sinais indecifráveis, este é
o reino da beleza que tem buscado a poesia através de Enrique Molina. O mar adentrando
as salas de sua entrega à vida sem fronteiras.
Que recordemos, na leitura de poemas de Enrique
Molina, outros poetas, de que são exemplos mais afins Saint-John Perse e Aimé Césaire,
é uma descoberta feliz de mundos que em sua vastidão não se isolam, que agem como
feitiços que se multiplicam na medida em que são identificados. Molina buscou o
que ele tão bem definiu, desde o título, no poema “Linguagem natural”, o amor à
vida, sem nenhuma vacilação, sob todos os riscos de derivar ou apodrecer, alheio
à chance de converter-se em mito ou demônio, apenas viver. Eis tudo o que fez com
uma intensidade invejável.
Enrique Molina nasceu em 1910 e morreu em 1996.
NOTAS
1. “Conversando com Enrique Molina”. Carlos Bedoya. El Mundo Semanal. Medellín: 31/10/1981.
2. Sotol é uma
bebida alcoólica mexicana, destilada de uma planta de nome Dasylirion wheeleri, também conhecida como sereque. [N.T.]
3. La Jornada. México: 31/07/2002. A entrevista completa se encontra ao
final desta edição.
4. “Conversa com Enrique Molina”. Marco Antonio Campos. Jornal Sábado. México: 17/04/1993.
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Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.
Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
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Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.
120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.
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Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.
A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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