POESIA & OUTRAS ESPÉCIES
HAT | Tratei de recuperar os mundos que as ideologias
perverteram em nossa juventude. Quando fui jovem as ideias que nos venderam
alimentavam as termas dos estados totalitários. Inclusive nosso próprio mundo
de colombianos podia ser catalogado entre eles. Era um mundo tutelado pela
religião e a ignorância, que as classes dominantes impuseram à juventude na escola
primária, na secundária e na universidade, com a crença em que, obliterando o
passado, desaparecia a violência que eles produziam de suas cadeiras do poder.
Um mundo feito de consignas morais e mentiras oficiais. Quando senti a
necessidade de escrever poesia nada parecia recuperável desses mundos de
horror. Quis então recuperar um pouco “o outro mundo” que havia descoberto nas
leituras de poetas nossos e de outros âmbitos linguísticos: a poesia chinesa
antiga, os poetas medievais eróticos, Eliot e Kaváfis. Mas claro, com muitas de
minhas alegrias depararam-se também Borges, García Márquez, Octavio Paz. Além
de meus esforços por imitá-los, a uns e a outros, umas vezes refugiando-me no
insondável passado e outras na busca de presentes literários, dei com a crua
realidade de minha juventude, manchada pelas proibições religiosas contra o
erotismo e a desonra de viver de tantos intelectuais que conheci e que hoje são
pó do ontem. Isto quis recuperar em meus poemas escritos nos anos 70 e em
alguns escritos posteriores, nas várias cidades populosas ou miseráveis onde
vivi. Muitos desses poemas parecem, segundo me dizem alguns jovens que os leem,
sem transcendência alguma, porém naqueles tempos ajudaram-me a expulsar muitos
pesadelos.
A vida é uma enfermidade do espírito, porém o nosso esteve contaminado
pelos piores vírus do século: as guerras mundiais, a inacabável guerra fria, o
ódio contra Cuba e a própria incompreensão dos cubanos, e de nós mesmos, de seu
mundo interior. Tudo foi, para muitos de nós, doloroso. Salvo apenas pela
poesia de nossos mestres, por Neruda, por Paz, por Borges. E por aquelas de
Eliot e Kaváfis, que para mim foram revelação, sem que se esqueça os poetas
espanhóis que descobri em Madri: Cernuda, Gil de Biedma, Brines. Eles também
deram alento à minha poesia.
FM | Segundo Jorge Teillier, “o poeta é o guardião do
mito e da imagem até que cheguem tempos melhores”. Também você se considera o
sobrevivente de uma idade perdida, tocado pela lepra, e destinado àquilo que Álvaro
Mutis chama – referindo-se à poesia – de “exercício para condenados”?
HAT | Talvez sejamos apenas guardiães de nossos mitos
pessoais. Os nossos parecem também ter sido a liberdade, que não se pode
alcançar, e a busca de prazeres não culposos, que tampouco conseguimos. Não
creio que existam mitos universais e menos ainda que possam alguns mitos passar
sobre os tempos sem deixar de ser apenas arquétipos. A ideia da liberdade que
temos não foi nunca a dos homens da Independência e menos ainda a dos europeus
do século XVIII; muito menos a dos democratas da Grécia ou de
Roma. Lemos as histórias e encontramos apenas os eflúvios do que quiseram. É
difícil saber com certeza o que entendiam por liberdade nessas épocas. Nós
mesmos não nos compreendemos nem nos colocamos de acordo nestes assuntos.
Quanto à felicidade pessoal, o erotismo, já podemos saber que raramente
mudou. Novas culpas e chagas saíram no corpo. Pensava-se que as licenças
sexuais inventadas nos anos 60 seriam emancipação, quando as mulheres
acreditavam livrar-se do mal que lhes haviam supostamente feito os homens, mas
hoje já sabemos que nada disto tampouco trouxe felicidade. A natureza vingou-se
do homem, de suas atrocidades e maldades, oferecendo a seus corpos uma nova
peste. O amor é eterno porque é o mal de não nos reconhecermos nos Outros, em
nós mesmos. Talvez devamos voltar a começar, e buscar mais no presente do que
no passado os gestos da felicidade. Talvez estejamos condenados a ter um amo
sem rosto: nós mesmos, com nossos esforços escravizantes por dar com a
liberdade individual sem lesionar a coletiva, por amar e possuir o outro sem
destruir a si mesmo lesionando a quem se ama.
FM | Que coincidências reconheceria com seus
antecessores colombianos, desde José Asunción até os integrantes de Mito?
HAT | Sem dúvida o desejo de viver em uma sociedade que
se concilie consigo mesma, que sane suas feridas, que ame nos demais o que
melhor ama em si mesma. Silva quis superar o mundo das Guerras Civis que
padeceu na própria carne, um país devorado pelas teorias de um liberalismo que
não se compadecia com a vida e os costumes de então, tão tradicionais, porém
impossíveis de mudar com a violência que produziram. Morreu deixando um romance
que é síntese desses desejos: José Fernández busca com afã, na imagem de uma
mulher bela e inatingível, um equilíbrio contra a loucura que lhe prodigalizou
a realidade. Silva morreu com um esgar de amargura na boca, causado pelas
tantas execuções judiciais a que foi submetido pelos credores de seu pai e os
seus próprios, pela incompreensão que sempre lhe rodeou, por seus projetos
irrealizáveis de fazer empresas modernas em um mundo caótico e politiqueiro.
Porém em sua obra respira-se um ar de renovação que não deixou de existir, ou
que ao menos existiu com tesão até Mito. Os de Mito deixaram
uma obra que indica como estávamos às portas de compreender o que seria a
civilidade, porém seus esforços foram abortados pela Violência dos anos 50, por
suas mortes prematuras, físicas ou morais, e pelos filhos da Violência,
os Nadaístas, expressão da barbárie mais atroz que culturalmente
tenha vivido o país e cujos desígnios realizaram-se nos anos 80, com funestas
consequências para a cultura falada e escrita. O Nadaísmo é o
malfeitor da cultura, os Matragas de nosso tempo. A suas doutrinas e quitanda
da frivolidade devemos muitos dos esbanjamentos estatais de hoje. E crer que as
Senhoras e os Filhos e Filhas, e até Sobrinhos, de poetas e escritores devem
herdar a condução do estado em matéria grave, como a educação e a cultura.
FM | Tensão entre essencialidade do ser e a fragmentação
de sua aparição, a poesia – diria Octavio Paz: “a poesia é entrar no ser” –
somente se realiza enquanto fragmentação, enquanto impossibilidade de sua
imagem total?
HAT | A ideia da existência de um ser além
das palavras é uma velhíssima doutrina que foi combatida com alguma eficácia
por Abelardo em suas lições de Paris, antes que o castrasse o zeloso guardião
de Eloísa. A “essência do ser” é uma universalização, e a sobrevivência da
caricatura desse dogma foi a causa, uma das causas, de nossas desgraças no
século que agora termina. Não creio que haja nada universal, nada cósmico, nada
totalizante, nada que tenha uma essência única além do corpo, espelho e taça do
próprio mundo. Compreender nosso corpo, em sua integridade como voz e pranto,
fome e dejeção, é talvez o caminho para abandonar o pesadelo das ideologias,
das teorias que nos têm oprimido. Todas essas postulações, levadas à prática na
vulgaridade do poder contra os que não se submetem, perpetuaram a tensão de que
você fala. Eu creio que as coisas são mais simples. Há que se aceitar que não
temos porque buscar cinco patas ao gato. Que a vida pode ser compreendida e
padecida sem necessidade de agregar-lhe outros sentimentos perversores,
religiosos, totalitários. Que busquemos a totalidade e que
nessa busca demos com a realidade de ser fragmentos apenas, é
uma realidade inquestionável. Borges mostrou em Pierre Menard como
escrever e ler são a mesma coisa: a própria vida. Porém a mesma e distinta para
todos. Aceitar a variedade em nossa unidade natural foi a conquista perdida
para nós dos povos eternos. Quando homens e deuses eram os mesmos. Quando não
existia a diferença entre homem e natureza, quando fêmea e macho eram o olho direito
e o olho esquerdo do mesmo rosto, quando a esquerda e a direita do corpo se
entendiam e se completavam, quando o Yin e o Yang não
estavam rompidos, quando o teu era o meu, como é na natureza, quando morte e
vida não eram oferecidas em supermercados e funerárias, mas sim na mesma
noite-dia da existência.
FM | Voltemos um pouco, antes de seguir com assuntos
literários, a suas palavras finais com respeito à situação cultural atual da
Colômbia.
HAT | O que quis dizer é que vivemos um dos piores momentos
para a cultura, nesta região da América Latina. A Colômbia foi qualificada de
conservadora em sua cultura, e razão não haverá faltado àqueles que assim a
viram, sem estudar, sem ir mais a fundo, é verdade, em nossa história recente.
Ao referir-me a Mito disse que eles trataram de retomar o
caminho latino-americano dos anos 20 e 30, dos ensinamentos de Alfonso Reyes,
de Pedro Henríquez Ureña, de Borges, de Paz, alguns deles integrantes do comitê
de redação desta revista. Porém, com o auge da Violência institucional e o
descobrimento de uma possibilidade de crescimento econômico que alcançou cotas
como nunca antes imaginamos, mas sem haver obtido uma redistribuição da receita
nacional, a educação e a cultura, como a saúde do povo, ficaram submersas em
mãos de uma nova casta de ordenhadores do dinheiro estatal que terminou por nos
fazer crer que umas Senhoras e uns senhores-Senhoras, quando não os herdeiros
biológicos de alguns poetas, tinham no sangue as fórmulas para o
desenvolvimento cultural do país. Aqui se viu implantada uma “cultura oral”,
segundo dizem as boas línguas, porque as Damas da Cultura não saber ler e
escrever; fomos dotados de Mansões Poéticas e de Fundações para Prêmios
Literários, com coches e choferes, a outras, pelo mero fato de levar algum
apelido ilustre ligado a versos retardatários; ou padecemos as camarilhas
sexuais de pacientes físicos ou psíquicos, que doam o pressuposto que deve o
estado às universidades, à investigação e criação artística, a seus protegidos.
Verdadeiros Serrallos andaluzes há em alguns institutos culturais colombianos.
FM | Em entrevista a Jim Alstrum, Juan Gustavo Cobo
Borda refere-se à perda do ritmo como a grande tragédia da poesia em nosso
século. Está de acordo?
HAT | Nosso tempo tem usado da sintaxe do cinema para
criar os correlatos imaginários que as tensões entre realidade e desejo
resolviam em outros tempos com a ajuda de metros e rimas. Porém não creio que o
ritmo, por desaparecer em muitas ocasiões na poesia, desde o aparecimento das
vanguardas, tenha morrido. É outro o ritmo de nosso tempo, outras as
necessidades de expressão. A poesia não faltou na escritura de nossos
escritores. Não falta nunca em García Márquez, que escreveu um extenso poema
trágico e cômico em memória de um ditador do Caribe, nem sequer em Jaramillo
Escobar e menos em Giovanni Quessep, com poemas que são signos dessa “ciência
do concreto” com a qual descobrimos, como o descobriram no Brasil os poetas e
romancistas do Modernismo e entre-guerras, tais como Graciliano Ramos, Cecília
Meireles ou Jorge de Lima, a solidão à qual nos confinou o século da ciência e
das guerras atômicas. Há uma tradição rítmica bem re-elaborada nos colombianos
que menciono. Cobo Borda crê na perda do ritmo talvez porque sua linguagem
juvenil se foi diluindo nos despenhadeiros retóricos de salões de chá e salas
de espera. Contudo, os meios de difusão poética estão dominados, desde o Nadaísmo e
seus continuadores, por uma linguagem e umas sintaxes anacrônicas, repetidoras
de modelos, para falar de um presente que não conheceram os Surrealistas, sem
retomar sequer as linguagens e ritmos das juventudes líricas de Paz ou
Vallejo. Os jovens sem educação secundária nem universitária acolheram essas
linguagens e sujeitos. Parece como se vivêssemos em retorno a fazer do poema
uma das manchas da psicologia experimental de Rorschach, quando o paciente lê
em um nanquim e começa a ver o que lhe alucina. Não importam as recuperações ou
invenções do indivíduo, mas sim o oferecimento ao público de glossolálias
coletivas; desarticuladas explorações combinatórias, rosários de metáforas e
neologismos, sem som nem músicas que não alcançam nem o Nada, essa “outra face
da existência” que buscava Huidobro.
A região mais golpeada pela Violência da classe emergente e da
institucional é o centro dessa aventura gaguejante, leporina, de alguma poesia
de hoje. Porém é sem dúvida expressão da miséria espiritual e essa poesia
ficará como crônica vil das lutas dos pobres dos bairros populares contra a
opressão da linguagem institucional que oferecem os jornais e as rádios a cada
manhã. Também nessas esferas políticas e desportivas há uma ecolalia. Uma
linguagem sem correspondências, sem referentes à realidade ou à invenção,
expressão do naufrágio da vida que padecemos. Quando alguém lê a poesia
publicada de mais de uma década para cá, em jornais e revistas colombianas,
parece como se estivesse lendo uma antologia da poesia dos anos finais do
império romano, quando aqueles que não foram acolhidos pela nova doutrina
cristã, nem se dedicaram ao erotismo, ausentavam-se da desagradável realidade
com variações de palavras e gêneros, os poemas desenhos, a aglomeração de
medidas em um só texto ou a enumeração de vozes de hienas e chacais. Nossos
atuantes Publilios Optatianos Perfirios não jogam com hexâmetros e o número de
letras, porém nos incomodam com frases como: “nos subúrbios um ócio
de café se prepara para açacalar a noite”, ou “a cidade mudou,
os cães leprosos que a cercam, seu ar encrespado, sua voz de
numen que agoniza”. A Gatecúmena Perpétua bem poderia
sentir-se representada neste uso de nomes, verbos e adjetivos.
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A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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