AS ENTREVISTAS COM JORGE LUÍS BORGES
Recordemos que um desses encontros se deu
no conto “O outro”, incluído em um de seus livros preferidos: O livro de areia (1975). Era o ano de
1969 quando Jorge Luis Borges encontrou-se com seu duplo jovial. Inquirido
acerca de quem se tratava, responde: Sou
argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra. Observa-se sempre o
caráter literário da conversa que se seguiu, o que enriquece a trama, afinal os
livros são uma das formas mais contundentes de expressão da existência humana.
O protagonista de “Sur” – conto que, alguns
anos após sua morte, seria adaptado por Carlos Saura para o cinema, em 1991 –
defendia que o ideal seria que pudéssemos escolher ou sonhar nossa própria
morte. Bibliotecário como Borges, conclui sua vida realizando o imperativo
desejo. Quando abrimos as páginas das Obras
Completas do poeta, ali encontramos o seguinte verso: Deus permite aos homens / sonhar coisas que são certas. Morrer em
Genebra foi, portanto, a escolha e o sonho de Borges.
A partir daí bem podemos imaginar seu
encontro, ao final de 1985, com o jovem argentino que acompanhara os pais em
uma viagem em 1914. Disse um ao outro: Conheço
essa cidade muito melhor do que Buenos Aires, com a memória implacável das
crianças. Segundo recorda María Kodama, Genebra encerrava uma fatalidade na
vida de Borges:
Era uma cidade unida à sua adolescência. Borges
adorava Genebra. Às vezes me comentava a influência que têm alguns lugares em
nossa evolução. Recordava Genebra como uma cidade cinza, um pouco triste. À
medida que foram passando os anos, essa visão mudou e compreendeu o quanto
tinha sido feliz. Não somente no plano intelectual. Porque em Genebra estudou
latim, francês. Aprendeu o alemão sem ajuda de ninguém, para poder ler
Schopenhauer. Através dele descobriu o budismo que o fascinaria para sempre.
Naquela ocasião também admirou o expressionismo alemão e traduziu seus poetas
para dá-los a conhecer na Espanha. Em Genebra descobriu o que é a tolerância
entre os homens. Nessa cidade assistiu à chegada dos refugiados da primeira
Guerra Mundial e o emocionou a solidariedade para com essa gente desfeita pela
guerra. Isso o marcou para sempre e de tal modo, que em seu último livro, Os
conjurados,
o poema que dá título ao livro está dedicado a Genebra. Esse poema é a carta
magna da Fundação Internacional Jorge Luis Borges, porque em seus versos se
expressa a esperança pela humanidade. Povos que até com distintas línguas e
religiões, pela força de sua vontade e a razão podem construir uma nova pátria,
sem perder suas peculiaridades e viver em harmonia. Essa ideia fascinava
Borges.
Além do polêmico sentido de humor – não
raro confundido com um errante espírito contraditório, sobretudo quando
descortinava a cena política, sustentada unicamente pelo apego a seus rígidos
conceitos –, Borges tinha o riso libérrimo. Seguramente estava correta sua
amiga Silvina Ocampo ao dizer que sua mente era impenetrável, tanto pela
inocência quanto pela inquietude. E ao menos em uma coisa acertou Estela Canto,
uma antiga namorada, embora fosse outra sua intenção: Borges era alguém
intensamente movido pelas emoções. Demasiado fria foi a leitura que dele
fizeram. Do desmedido intelectualismo à desmesurada repetição de si mesmo.
Pensemos no que disse recentemente Álvaro Zamora:
Em Borges, o intelectual é um recurso da forma.
Inseparável do móvel temático, se quisermos: mas o que verdadeiramente governa
toda sua obra é uma força mais fundamental e vertiginosa. Trata-se da
imaginação.
Como Tirésias, no mito de Ateneia, Borges olhava
para seu interior, para depois ditar lenta e cuidadosamente jogos e
quebra-cabeças textualizados que imaginava. Seu oráculo não era invenção dos
deuses, mas sim das possibilidades para refazer o universo com ficções
literárias.
Borges converteu o poema, a ficção e o
ensaio em um gênero único, entrecortado por filigranas – na verdade, passagens
secretas de um labirinto que urdiu por uma vida inteira – que o remetia a uma
ambiguidade essencial, sobretudo porque tomada de variações e apropriações. Não
escrevia em função tão-somente da escrita e sim da inumerável tessitura de sua
imaginação. Esteve com Heráclito na saciedade da máxima que todos trazemos de
memória. Um ano antes de morrer, ao escrever os poemas de Os conjurados, ainda surpreendia a partir dos mesmos temas, das
mesmas imagens.
Soube dar a si próprio o raro
distanciamento necessário ao esboço das personas que compõem uma obra. Foi
todos os personagens de seus livros, incluindo os poemas – seus versos
encontram-se urdidos por um fio narrativo. Possuía o que Octavio Paz chamou de temperamento metafísico, sendo um homem apaixonado pelas ideias e,
consequentemente, corroído pela
pluralidade. Em um memorável poema de A
cifra nos diz: Meu alimento é todas
as coisas, para concluir: Não importa
minha ventura ou desventura. / Sou o poeta.
As entrevistas aqui reunidas vão de 1964 a 1985, ano que antecede o de sua morte. Há uma destacada intenção de acompanhamento de suas ideias ao longo de duas décadas. Este período define um Borges à luz da curiosidade da imprensa – circularam então dezenas de entrevistas em vários países. Como disse ele próprio: Tua matéria é o tempo, o incessante / tempo. És cada solitário instante. E não foi senão isto: uma notável compreensão do tempo como a pronúncia incessante de nossa existência. Ao desatar o nó górdio ou ao plantar cebola em um jarro, de todas as formas a história se faz. Lemos em um livro já destruído pelo tempo e trazido à memória unicamente pela obsessão de seu relato que os arquétipos têm a forma de seu próprio desejo. Borges não inventou ou reconstruiu a si próprio. Quis apenas ser os outros, embora sempre os mesmos, que povoavam sua memória.
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Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
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Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
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III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
Agulha Revista de Cultura
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1999-2024
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